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Resumo
INTRODUÇÃO
Desde que o ser humano aprendeu a nomear o mundo, contar histórias tornou-se mais do que passatempo: foi ponte entre gerações, espelho de identidades e bússola moral. Mitos, fábulas e epopeias não apenas entretiveram, mas costuraram o tecido simbólico das culturas. No cenário digital atual, essa habilidade ancestral reaparece com nova pele: o storytelling aplicado ao marketing de conteúdo. Hoje, as marcas, à semelhança dos heróis arquetípicos, se lançam em jornadas simbólicas em busca da atenção e do afeto de um público cada vez mais seletivo. Nessa travessia, estruturas narrativas como a Jornada do Herói (Campbell, 2007) e o modelo clássico dos Três Atos, herdado do teatro e do cinema, ressurgem como mapas afetivos que guiam a construção de identidade e persuasão emocional.
Este artigo propõe investigar como essas tramas clássicas vêm sendo adaptadas estrategicamente por marcas no ambiente digital, sobretudo dentro do contexto do marketing de conteúdo. Interessa compreender como estruturas originalmente literárias e cinematográficas têm migrado para o universo corporativo, transformando-se em poderosos dispositivos de identificação, engajamento e conversão.
A pergunta que impulsiona esta reflexão é direta e provocadora: como a adaptação de narrativas míticas às estratégias de marca molda a percepção e o comportamento do consumidor contemporâneo? A busca por respostas passa não apenas pela análise da eficácia comunicacional dessas histórias, mas também pela ponderação ética sobre seus limites e os perigos da artificialidade narrativa.
A relevância deste estudo reside na crescente valorização, por parte dos consumidores, de conteúdos autênticos e emocionalmente ressonantes. Num mercado sufocado por discursos genéricos e promessas vazias, saber contar uma boa história tornou-se um dos diferenciais mais poderosos. Marcas que compartilham suas trajetórias, desafios e propósitos não apenas vendem, mas também tocam, movem, inspiram.
A metodologia adotada é de cunho qualitativo e exploratório, com base em revisão bibliográfica de autores clássicos e contemporâneos nos campos do storytelling, marketing e comunicação estratégica. Serão analisados ainda estudos de caso de marcas que, ao empregar arcos narrativos tradicionais em campanhas digitais, conseguiram conectar emoção e estratégia, gerando resultados significativos.
Dessa forma, este artigo lança luz sobre os cruzamentos entre mito, narrativa e consumo, revelando como estruturas milenares seguem vivas, reinventadas, como aliadas da comunicação contemporânea. Não basta ser lembrado — no mercado atual, é preciso ser sentido.
NARRATIVA COMO ESTRATÉGIA: O STORYTELLING NO MARKETING CONTEMPORÂNEO
No turbilhão de estímulos que marcam a era da hiperconectividade, onde cada segundo de atenção é disputado como um raro tesouro, captar e sobretudo manter o olhar do público tornou-se um desafio e tanto para as marcas que almejam relevância. Nesse cenário em constante ebulição, o storytelling desponta não como modismo passageiro, mas como uma das mais potentes ferramentas da comunicação estratégica. Longe de ser apenas um ornamento retórico, contar histórias é um gesto ancestral que pulsa no cerne da experiência humana, capaz de transformar valores abstratos em vivências tocantes, que falam direto ao coração. No universo do marketing, isso se traduz na habilidade de inspirar, emocionar e persuadir não com números ou especificações técnicas, mas por meio de narrativas que despertam reconhecimento e pertencimento.
Como afirmam Kotler et al. (2019), o marketing já não órbita mais exclusivamente em torno de produtos; ele gira, agora, em torno de valores e propósitos. Nesse novo horizonte, a narrativa torna-se uma ponte simbólica entre o que a marca promete e aquilo em que o consumidor acredita. Escalas (2004), por sua vez, ressalta que a identificação narrativa é um dos principais mecanismos de vínculo afetivo entre indivíduos e marcas, sobretudo quando discurso e prática dançam em sintonia.
Pulizzi (2020), que cunhou o conceito de marketing de conteúdo, é enfático: num mundo onde o consumidor busca vivências e não apenas transações, contar histórias deixou de ser uma alternativa e passou a ser exigência. Marcas que atuam como curadoras de experiências, que editam, criam, emocionam, ganham mais do que atenção: conquistam confiança. E confiança, hoje, é um ativo escasso. A Harvard Business Review (2014) reforça esse poder dizendo que histórias bem contadas são 22 vezes mais memoráveis que dados soltos ao vento. Há ainda um clamor por autenticidade. Como observam Lundqvist et al. (2013), narrativas genuínas funcionam como reserva de valor simbólico, ampliando o engajamento e solidificando reputações. O storytelling, nesse sentido, deixa de ser mero entretenimento e assume a função de bússola estratégica: orienta, diferencia, posiciona.
No contexto brasileiro, Xavier (2015) também sublinha a potência dessa abordagem. Em Storytelling: histórias que deixam marcas, o autor mostra como narrativas bem urdidas podem gerar conexões verdadeiras entre marcas e pessoas, sobretudo nos espaços fluidos das redes sociais. Para eles, contar histórias é uma maneira eficaz de traduzir missão e valores em linguagem emocional, compartilhável, viva.
Contudo, vale lembrar: não basta caprichar na estética ou apostar na criatividade solta. O storytelling só ganha corpo e credibilidade quando enraizado na cultura organizacional, quando sustentado por coerência e guiado por um conhecimento profundo do público. Caso contrário, corre-se o risco de entregar ao consumidor uma história bela por fora, mas oca por dentro, e, convenhamos, o vazio reverbera. Assim, no marketing contemporâneo, o storytelling não é só forma. É forma e fundo. É gesto e substância. É estratégia com alma. Seu poder não está apenas em comunicar ideias, mas em conectar pessoas, bordar memórias e gerar pertencimento. E talvez seja justamente aí que resida seu brilho mais duradouro.
A JORNADA DO HERÓI: QUANDO MITOS ANTIGOS GUIAM MARCAS CONTEMPORÂNEAS
Tecida a partir de fios mitológicos, antropológicos e literários, a Jornada do Heroi, ou Monomito, proposta por Joseph Campbell (1949) em O Heroi de Mil Faces, ressurge no presente como uma bússola narrativa que atravessa séculos e civilizações. Essa estrutura, moldada pela análise de lendas de diferentes culturas, traça um roteiro arquetípico composto por doze etapas, desde o chamado à aventura até o retorno com o elixir, revelando transformações que ressoam no inconsciente coletivo. Não à toa, tornou-se um farol para o marketing de conteúdo contemporâneo, que encontra nela um mapa simbólico para emocionar, envolver e inspirar.
No palco das marcas, a figura central dessa odisseia não é mais a empresa, mas o consumidor. Ele, o heroi moderno, enfrenta desafios cotidianos e busca superações, enquanto a marca assume o papel de mentor: sábio, prestativo, silenciosamente essencial. Essa inversão estratégica, defendida por Miller (2017) em StoryBrand, desloca o protagonismo e reposiciona o marketing como uma prática relacional, onde a narrativa se constroi a partir da escuta e do cuidado, e não da autopromoção.
Grandes marcas, como a Nike, souberam traduzir esse roteiro em campanhas de alto impacto emocional. Em “Find Your Greatness” (2012), lançada durante os Jogos Olímpicos, a marca deslocou o foco dos medalhistas consagrados para indivíduos comuns, que enfrentam e vencem suas próprias batalhas com coragem e determinação. Aqui, os produtos não são apenas objetos, mas aliados simbólicos que impulsionam o heroi-anônimo em sua travessia pessoal.
Fog et al. (2005), em Storytelling: Branding in Practice, explicam que ao utilizar arquétipos e estruturas míticas, as marcas acessam zonas profundas da psique humana, ativando empatia, construindo confiança e sedimentando memórias afetivas. A Jornada do Heroi, nesse sentido, funciona como espelho simbólico onde o consumidor pode se projetar e, assim, se vincular emocionalmente à história e à identidade da marca. Estudos como o de Woodside, Sood e Miller (2008), reforçam essa percepção. Campanhas que incorporam narrativas completas, com conflito, desenvolvimento e resolução, tendem a gerar maior engajamento e intenção de compra. A explicação, segundo Zak (2015), encontra-se no cérebro límbico, guardião das emoções, ativado por histórias que ressoam com experiências humanas profundas.
Ao adotar a Jornada do Heroi como alicerce estratégico, as marcas deixam de apenas vender promessas e passam a oferecer experiências transformadoras, seja no plano físico, emocional, social ou aspiracional. Nesse contexto, o storytelling extrapola a técnica e se transforma em linguagem simbólica, onde produto, propósito e pessoa se entrelaçam numa mesma narrativa. Mas há que se tomar cuidado. Ao tentar adaptar uma estrutura tão rica, o risco de transformar a jornada em fórmula vazia não é desprezível. Salmon (2008), em Storytelling: La machine à fabriquer des histoires et à formater les esprits, alerta que o excesso de padronização pode diluir a potência da narrativa, transformando-a em um simulacro de conexão. Por isso, autenticidade e coerência não são detalhes, são os pilares que sustentam qualquer narrativa digna de confiança.
Sendo assim, quando bem empregada, a Jornada do Heroi se revela uma poderosa ferramenta simbólica. Ela permite que marcas deixem de apenas existir para, de fato, serem sentidas, guiando consumidores por percursos de transformação que, embora pessoais, encontram eco coletivo. E é nesse entrelaçamento de histórias e significados que reside o verdadeiro poder de um marketing que deseja não só ser lembrado, mas vivido.
A ESTRUTURA DOS TRÊS ATOS: O FIO INVISÍVEL QUE COSTURA NARRATIVAS NO MARKETING DIGITAL
Se a Jornada do Heroi oferece um mergulho simbólico na transformação do sujeito, a estrutura clássica dos Três Atos surge como uma bússola narrativa que organiza a emoção em tempo e forma. Herdada da tradição aristotélica descrita na Poética, essa arquitetura divide a história em três movimentos essenciais: início, meio e fim. Ou, mais precisamente, apresentação, conflito e resolução. Uma simplicidade que, longe de limitar, revela-se terreno fértil para a criação de conteúdos memoráveis, sendo utilizada na grande maioria dos formatos de filmes, a título de exemplo.
No universo contemporâneo do marketing digital, onde o tempo é curto e o impacto precisa ser imediato, essa estrutura continua sendo um recurso valioso. Ela é o esqueleto invisível que sustenta vídeos virais, narrativas publicitárias, postagens em redes sociais e campanhas por e-mail. Como bem pontua Field (2005), sua eficácia reside no equilíbrio entre o conforto do conhecido e o fascínio pelo inesperado. Ao seguir esse roteiro, a comunicação não apenas informa, mas transforma a experiência do receptor em uma jornada envolvente.
O primeiro ato planta as sementes da empatia: apresenta o personagem, situa o cenário e insinua um desejo; muitas vezes, o próprio consumidor e suas aspirações. No segundo ato, surgem os obstáculos, o conflito que alimenta a tensão e sustenta o enredo. É aqui que a marca, quase como um aliado silencioso, começa a revelar sua relevância. O terceiro ato, por sua vez, oferece a recompensa: a superação, a transformação, o clímax que sela o ciclo narrativo e inscreve a marca na memória afetiva do público.
Em ambientes como o YouTube, Instagram Reels e TikTok, essa estrutura é condensada em poucos segundos, exigindo precisão quase cirúrgica. Stern (1994) observa que narrativas bem delineadas ativam processos mentais profundos, favorecendo a identificação simbólica e a retenção da mensagem. O storytelling, portanto, não é um luxo narrativo, mas um mecanismo cognitivo essencial para capturar a atenção e provocar ação.
Campanhas como “Real Beauty Sketches”, da Dove (2013), são exemplares nesse sentido. No primeiro ato, vemos mulheres comuns confrontando suas inseguranças com um artista às perguntando sobre seus rostos. No segundo ato, o artista desenha rostos com base em diferentes descrições, tanto das próprias pessoas quanto de terceiros, e o suspense cresce. No terceiro, as comparações revelam uma verdade tocante sobre autopercepção, e a marca se inscreve, com delicadeza, no imaginário coletivo como promotora da autoestima. Outra narrativa marcante é a dos vídeos da Airbnb, em que viajantes e anfitriões se conectam por meio de experiências reais, cruzando fronteiras geográficas e emocionais em apenas alguns minutos de tela.
Para Fog et al. (2005), a força de uma boa história reside não apenas no conteúdo, mas na estrutura que a sustenta. E a estrutura dos Três Atos oferece justamente isso: um contorno emocional capaz de acolher a mensagem, sem ruído, sem excesso, sem dispersão.
Contudo, é importante lembrar: em tempos de velocidade vertiginosa e atenção fragmentada, contar histórias curtas não é sinônimo de contar histórias rasas. Uma boa narrativa, mesmo em 60 segundos, carrega o poder de tocar, mover e transformar. O segredo está em esculpir sentido com precisão e emoção.
Assim, no coração do marketing digital, a estrutura dos Três Atos permanece como uma ferramenta criativa que organiza a sensibilidade em forma e faz da publicidade algo mais que venda, faz dela memória, experiência e, sobretudo, conexão.
ENTRE EMOÇÃO E ESTRATÉGIA: LIMITES ÉTICOS DA NARRATIVA PERSUASIVA
O fascínio pelas histórias no universo do marketing contemporâneo é, sem dúvida, poderoso. Elas emocionam, criam laços, movimentam afetos e, não raro, abrem caminhos para a fidelização. No entanto, por trás desse encanto narrativo, esconde-se uma tensão delicada. Se, por um lado, o storytelling é ponte para a verdade e a identificação, por outro, pode escorregar sutilmente para a armadilha da manipulação. A linha entre a persuasão ética e a exploração emocional é tão fina quanto um fio de névoa: tênue, quase imperceptível, mas de consequências profundas.
Salmon (2008) nos adverte que, quando usado de maneira irresponsável, o storytelling corre o risco de se converter em uma engrenagem retórica que molda percepções sem oferecer substância. E é nesse vácuo entre discurso e prática que se instala o fenômeno do storywashing: a apropriação simbólica de causas e dores legítimas com o único propósito de seduzir consumidores, sem qualquer intenção real de transformar aquilo em prática institucional. Campanhas que apelam para histórias comoventes sobre diversidade, sustentabilidade ou saúde mental, mas que não encontram eco nas ações da empresa, desmoronam diante de um público cada vez mais atento. Como alertam Andreoli et al. (2025), o risco reputacional, nesse cenário, é alto e imediato.
Zaltman (2008) aponta que até 95% das decisões de consumo nascem de processos inconscientes e emocionais. Esse dado, embora fascinante para os estrategistas, impõe uma responsabilidade ética imensa para quem manipula o enredo das marcas. Se as histórias tocam o coração antes de alcançar a razão, então não se pode brincar com o afeto alheio como quem molda a argila. Não se trata apenas de convencer, mas de respeitar a integridade emocional de quem está do outro lado da tela. Jamali (2008) reforça que não há narrativa potente que sobreviva ao teste do tempo se estiver desvinculada da prática institucional. É a coerência entre discurso e ação que sustenta a autenticidade de uma marca. Em tempos de redes sociais e escrutínio público em tempo real, inconsistências são escancaradas, compartilhadas, viralizadas, e o dano é profundo, muitas vezes irreversível.
Portanto, é preciso lembrar que o storytelling, quando praticado com responsabilidade, não é mero enfeite persuasivo. É um reflexo simbólico da alma organizacional. Como defende Crocco (2012), a história precisa ser extensão da cultura, tradução dos valores e espelho do impacto social real. Quando há alinhamento entre missão, comunicação e atitude, a narrativa ganha corpo, verdade e potência.
Contar histórias, afinal, é mais do que montar enredos sedutores. É um exercício de escuta, sensibilidade e respeito. O público não é uma plateia passiva, mas um conjunto de pessoas reais, com trajetórias, fragilidades e aspirações legítimas. Manipular essas emoções em nome do lucro é dessacralizar o poder simbólico da narrativa e, pior, corroer os alicerces da confiança. E sem confiança, nenhuma história sobrevive, nem mesmo a mais bem contada.
ESTUDOS DE CASO: MARCAS QUE CONTAM BOAS HISTÓRIAS
A potência de uma narrativa não reside apenas em sua arquitetura formal, mas na alquimia entre forma, conteúdo e verdade. É quando a história pulsa no compasso dos valores da marca, ressoa nas aspirações do público e se ancora no espírito do tempo que transcende o mero enredo e se torna vínculo. Algumas marcas, conscientes dessa magia, dominaram a arte de contar histórias com alma, com autenticidade, coerência e impacto emocional, e encontraram no storytelling um espelho simbólico capaz de refletir identidades e criar conexões duradouras. É o caso da Nike, da Airbnb e da Dove, cujas campanhas se tornaram referências ao aplicar com maestria estruturas clássicas como a Jornada do Heroi e a divisão em Três Atos.
A Nike, em sua emblemática campanha “You Can’t Stop Us” (2020), deu um passo além do discurso publicitário tradicional e costurou, com imagens potentes e histórias reais, uma colagem de superação coletiva em meio ao caos da pandemia. O roteiro emocional segue uma lógica impecável: no início, o silêncio dos estádios e a pausa abrupta do esporte desenham o cenário do conflito; em seguida, vemos atletas e cidadãos comuns enfrentando adversidades, num retrato corajoso da fragilidade e da luta; por fim, surge a catarse, a superação forjada na união, com a Nike presente como aquela mentora silenciosa, que acredita e impulsiona. Não é a marca que se ergue heroicamente, mas o consumidor. E a empresa se limita, com elegância e firmeza, a sussurrar: “nós confiamos em você”. Como em Campbell (1949), o heroi é chamado à aventura, passa pela provação e retorna transformado, não como alguém melhor, mas como alguém desperto.
Na mesma trilha, a Airbnb (2021), com sua delicada série “Made Possible by Hosts”, transformou hospedagens em poesia. São pequenas narrativas costuradas com afetos, encontros e descobertas que seguem a lógica simples e poderosa do início, meio e fim. No primeiro momento, há o viajante, carregando sonhos e expectativas. Em seguida, o acolhimento inesperado, o gesto generoso, o riso compartilhado com estranhos que se tornam memórias. Por fim, a transformação: a viagem que era destino se revela experiência, e a hospedagem que parecia ponto de apoio torna-se o próprio enredo. A marca, com discrição, se apresenta como a ponte entre o desejo e o vivido, não protagonista, mas facilitadora de encontros com o mundo e consigo mesmo. Aqui, a estrutura clássica não engessa, mas liberta a emoção, como bem apontou Field (2005) ao defender que o poder do storytelling está na previsibilidade que conforta e na surpresa que emociona.
A Dove, por sua vez, ao lançar “Real Beauty Sketches” (2013), cravou no imaginário coletivo um manifesto em forma de história. Mulheres comuns descreviam a si mesmas como um artista forense, cujos desenhos eram, depois, comparados com retratos feitos a partir da visão de outras pessoas. O resultado escancarou um abismo entre como nos vemos e como somos vistos. A narrativa é uma jornada arquetípica: a heroína enfrenta o inimigo invisível da autocrítica; o mentor, representado pelo artista e, simbolicamente, pela marca, conduz à revelação transformadora. E o retorno é libertador: a aceitação de uma beleza que habita o real, e não o ideal. Com sensibilidade, a Dove se reposicionou como voz da autoestima e da diversidade, mobilizando emoção sem apelar à manipulação, como alertam Salmon (2008) e Zak (2015) sobre os riscos de transformar narrativas em artifício vazio.
Em todos esses casos, nota-se que não basta narrar, é preciso escutar, sentir, envolver. As marcas não apenas disseram algo, elas fizeram sentir. Como lembram Lundqvist et al. (2013), contar boas histórias é mais do que uma habilidade retórica, é uma prática de humanização. E nesse processo, o storytelling se afasta do enfeite e se aproxima da essência. Ele deixa de ser ornamento e torna-se eixo, linha mestra, corpo e alma da comunicação. É nesse entrelaçamento entre o simbólico e o estratégico que reside sua força. Quando bem contadas, as histórias não apenas vendem, elas ficam. Permanecem na memória, reverberam no afeto e, sobretudo, cultivam vínculos que resistem ao tempo e às modas passageiras.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Contar histórias é, desde sempre, uma forma de dar forma ao caos, de emprestar sentido às experiências que nos atravessam. No universo do marketing contemporâneo, essa prática ancestral ressurge vestida de estratégia, transformando-se em ponte sensível entre marcas e pessoas. Longe de ser mero artifício estilístico, o storytelling tornou-se uma linguagem que gera identificação, mobiliza afetos e influencia decisões. Ao longo deste artigo, examinou-se como estruturas narrativas clássicas, notadamente a Jornada do Herói e a divisão em Três Atos, vêm sendo reconfiguradas e aplicadas pelas marcas para organizar seus discursos, engajar seus públicos e, mais que tudo, construir identidades simbólicas em um cenário digital saturado de mensagens efêmeras.
Nos exemplos analisados, é evidente que marcas como Nike, Dove e Airbnb não apenas dominam a técnica narrativa, mas a utilizam com sensibilidade, respeitando os contornos simbólicos dessas arquiteturas. Suas campanhas esculpem trajetórias de transformação, nas quais o conflito, o aprendizado e o retorno com sentido se entrelaçam a valores sociais contemporâneos. Ao colocar o consumidor no centro da história como herói em potencial e assumir o papel de mentor, guia ou facilitador, essas marcas evocam experiências que ressoam no íntimo e se fixam na memória.
A resposta à questão de pesquisa, de que modo narrativas míticas adaptadas influenciam o comportamento do consumidor, repousa justamente na força simbólica dessas estruturas. Como nos lembra Campbell, os mitos dialogam com arquétipos profundos da psique humana. No campo do marketing, essa simbologia se converte em campanhas que não apenas informam, mas despertam, tocam e transformam. São histórias que o consumidor reconhece como suas, não porque já as viveu, mas porque gostaria de vivê-las.
Ainda assim, tão importante quanto explorar o poder da narrativa é refletir sobre seus limites éticos. Afinal, toda história carrega consigo uma responsabilidade. Quando a emoção é instrumentalizada, quando a narrativa se dissocia da prática e da verdade institucional, rompe-se o fio da confiança. Em tempos de vigilância social e consciência crítica crescente, não há mais espaço para discursos vazios ou encenações mercadológicas. Como salientam Salmon (2008) e Andreoli et al. (2025), o risco do storywashing é real, e os danos à reputação, difíceis de reparar.
Dessa forma, conclui-se que os arcos narrativos clássicos permanecem como potentes ferramentas simbólicas na comunicação estratégica. Contudo, para que suas histórias encantem sem enganar, emocionem sem manipular, é preciso que estejam ancoradas em compromissos autênticos e práticas concretas. Em um mundo que já se cansou das aparências, contar boas histórias é, acima de tudo, firmar um pacto silencioso de confiança com quem escuta, ou lê, ou assiste, ou compartilha. É nesse pacto que reside a força mais profunda do marketing narrativo: sua capacidade de transformar não só o olhar, mas a relação entre marcas e gente de verdade.
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