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Resumo
INTRODUÇÃO
A migração é um fenômeno histórico e universal, intensificado nos últimos séculos devido a fatores políticos, econômicos, sociais e ambientais. Desde tempos remotos, populações humanas deslocam-se em busca de melhores condições de vida, fugindo de guerras, perseguições, catástrofes naturais e crises econômicas. No entanto, a contemporaneidade trouxe desafios inéditos a esse fluxo humano, tornando a migração não apenas um ato de deslocamento territorial, mas um reflexo das desigualdades globais e da necessidade urgente de proteção dos direitos fundamentais dos migrantes e refugiados. Segundo Hannah Arendt (1951), os migrantes frequentemente se tornam apátridas, destituídos de direitos básicos e sujeitos à mercê dos Estados que os acolhem, evidenciando uma crise dos direitos humanos na esfera global.
A migração pode ser voluntária, quando ocorre por escolha própria em busca de oportunidades melhores, ou forçada, quando indivíduos se veem obrigados a abandonar seu país de origem devido a ameaças à sua vida e dignidade. Os refugiados, em particular, são protegidos pela Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951), que define como tal qualquer pessoa que, “devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opinião política, encontra-se fora do país de sua nacionalidade e não pode ou não quer regressar devido a essa perseguição” (ACNUR, 1951).
Ainda que os direitos humanos sejam universais, a proteção dos migrantes enfrenta desafios na prática, pois as políticas migratórias muitas vezes são moldadas por interesses nacionais, geopolíticos e econômicos. Conforme apontado por Piovesan (2019), há um paradoxo entre o discurso internacional dos direitos humanos e a realidade enfrentada pelos migrantes nos países de destino, onde são frequentemente marginalizados, explorados e, em muitos casos, criminalizados.
No Brasil, a Lei de Migração (Brasil nº 13.445/2017) representa um avanço significativo na garantia dos direitos dos migrantes ao substituir o antigo Estatuto do Estrangeiro, que tinha um viés mais restritivo e vinculado à segurança nacional. A nova legislação baseia-se nos princípios da universalidade dos direitos humanos, da acolhida humanitária e da não discriminação, reconhecendo o migrante como sujeito de direitos e não apenas como um fator de controle estatal (Brasil, 2017). No entanto, a implementação dessa lei ainda enfrenta desafios práticos, especialmente na regularização documental, acesso a serviços básicos e combate à xenofobia estrutural.
A migração, longe de ser uma questão isolada, deve ser analisada dentro do contexto global de interdependência econômica, crises ambientais e tensões políticas. Como destaca Castles (2013), os Estados-nação modernos enfrentam dificuldades em equilibrar suas políticas de soberania territorial com a necessidade de respeitar os compromissos internacionais de proteção dos direitos humanos. O fechamento de fronteiras, a criminalização da migração irregular e a militarização das políticas migratórias são algumas das medidas adotadas por países que buscam restringir a entrada de estrangeiros, muitas vezes em contradição com seus compromissos internacionais de direitos humanos.
Por outro lado, há países que adotam modelos mais inclusivos, reconhecendo o potencial dos migrantes para o desenvolvimento econômico e social. A União Europeia, por exemplo, implementa políticas de integração baseadas na concessão de status legal, acesso ao mercado de trabalho e programas de reassentamento. No entanto, a crise migratória de 2015 demonstrou as limitações desse modelo, com a ascensão de discursos nacionalistas e xenofóbicos que influenciaram mudanças legislativas mais restritivas em diversos países do bloco (Guerrero, 2017).
O Brasil, historicamente reconhecido como um país de imigração, apresenta um modelo diferenciado de recepção a refugiados e migrantes vulneráveis. O reconhecimento da condição de refugiado é realizado pelo Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), seguindo os preceitos da Convenção de 1951. Além disso, o país tem adotado políticas emergenciais para fluxos migratórios específicos, como o acolhimento humanitário aos venezuelanos no contexto da Operação Acolhida (Brasil, 2018). No entanto, desafios persistem no que tange à infraestrutura de acolhimento, políticas de integração laboral e combate à xenofobia.
A migração também está intimamente ligada a questões ambientais, configurando um novo fenômeno: os refugiados ambientais. Eventos climáticos extremos, como secas prolongadas, desertificação e aumento do nível do mar, têm forçado populações inteiras a abandonarem suas terras em busca de sobrevivência. No entanto, a legislação internacional ainda não reconhece formalmente os deslocados ambientais como refugiados, o que cria um vácuo jurídico na proteção desses indivíduos (Silva, 2020).
Diante desses desafios, este artigo busca investigar os principais obstáculos enfrentados pelos migrantes e refugiados no que concerne à proteção de seus direitos humanos, analisando os marcos normativos internacionais e nacionais, bem como as políticas públicas existentes para garantir sua dignidade e inclusão social. A abordagem metodológica adotada consiste em uma revisão bibliográfica baseada em doutrinas jurídicas, tratados internacionais e legislação nacional pertinente ao tema.
Em um mundo onde as fronteiras se tornam cada vez mais simbólicas para a economia, mas rígidas para a circulação de pessoas, torna-se essencial repensar as estratégias de acolhimento e proteção aos migrantes. Como observa Bauman (1999), a globalização econômica não foi acompanhada por uma globalização dos direitos humanos, resultando em profundas desigualdades no acesso à cidadania e à dignidade. O desafio contemporâneo reside, portanto, na criação de um modelo migratório que equilibre o respeito à soberania dos Estados com a imperatividade da proteção dos direitos humanos.
Nos capítulos seguintes, serão explorados os principais marcos normativos que regem a proteção dos migrantes e refugiados, as dificuldades na implementação dessas normas e as estratégias para fortalecer mecanismos de inclusão e justiça social. Em um cenário global onde os deslocamentos populacionais tendem a aumentar devido às crises políticas e ambientais, a reflexão sobre essa temática torna-se essencial para garantir que o direito cumpra seu papel primordial: a defesa da dignidade humana em todas as suas dimensões.
DIREITOS HUMANOS E MIGRAÇÃO NA PERSPECTIVA JURÍDICA
A migração, fenômeno tão antigo quanto a própria humanidade, carrega consigo um paradoxo que se manifesta em escalas globais. Enquanto discursos sobre direitos humanos pregam a dignidade e a igualdade de todos os indivíduos, as fronteiras nacionais impõem barreiras seletivas que excluem e marginalizam. O embate entre a soberania estatal e a universalidade dos direitos humanos cria um cenário jurídico complexo, no qual as normas internacionais tentam garantir proteção aos migrantes e refugiados, enquanto os Estados, muitas vezes, erguem muros – físicos e normativos – para conter o fluxo de deslocamentos.
O Direito Internacional dos Direitos Humanos estabelece uma série de instrumentos jurídicos fundamentais para a proteção dos migrantes, independentemente de sua condição documental. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), adotada em 1948, é um dos pilares desse arcabouço normativo, assegurando, em seu artigo 14, o direito de todo indivíduo a buscar asilo em outros países para escapar de perseguições (Nações Unidas, 1948). No entanto, a simples afirmação desse direito não significa sua concretização. Na prática, muitos Estados impõem restrições severas, negando refúgio com base em critérios arbitrários ou interesses políticos.
A Convenção de 1951 sobre o Estatuto dos Refugiados e seu Protocolo de 1967, por sua vez, representam marcos essenciais na proteção internacional dos refugiados. Esses instrumentos definem quem pode ser considerado refugiado e estabelecem o princípio do non-refoulement, segundo o qual nenhum indivíduo pode ser devolvido a um país onde sua vida ou liberdade esteja em risco (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados – ACNUR, 2021). Em teoria, esse princípio deveria funcionar como uma barreira contra deportações arbitrárias; na prática, sua aplicação encontra desafios, uma vez que diversos Estados adotam políticas que, direta ou indiretamente, resultam na expulsão de migrantes em situação de vulnerabilidade.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), instância responsável pela interpretação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, tem desempenhado um papel crucial na consolidação do entendimento de que migrantes, independentemente de sua situação documental, são sujeitos de direitos. No caso Advisory Opinion OC-18/03, a Corte reafirmou que a irregularidade migratória não pode ser pretexto para negar direitos fundamentais, como acesso à saúde, educação e proteção contra tratamentos desumanos (Corte Interamericana de Direitos Humanos, 2003).
No contexto brasileiro, a legislação migratória passou por mudanças significativas com a promulgação da Lei de Migração (Lei nº 13.445/2017). Esse marco legal substituiu o antigo Estatuto do Estrangeiro, herdado da ditadura militar e pautado por uma visão securitária da migração. A nova lei trouxe uma abordagem mais humanitária e garantista, reconhecendo os migrantes como sujeitos de direitos e estabelecendo princípios como a não criminalização da migração e a igualdade de tratamento entre nacionais e estrangeiros (Brasil, 2017).
Apesar dos avanços legislativos, a implementação da política migratória brasileira enfrenta desafios significativos. A chegada massiva de imigrantes venezuelanos ao Brasil nos últimos anos colocou à prova a capacidade do Estado de oferecer acolhimento adequado. Para lidar com essa crise humanitária, o governo federal criou a Operação Acolhida, um programa que combina assistência emergencial, interiorização e integração socioeconômica dos refugiados. No entanto, problemas estruturais persistem: a superlotação dos abrigos, a precariedade das condições sanitárias e as dificuldades de inserção no mercado de trabalho refletem as lacunas entre a norma e a realidade (Cavalcanti, 2020).
A xenofobia e a discriminação também representam barreiras adicionais à plena integração dos migrantes. Discursos políticos que associam a migração à criminalidade ou à sobrecarga dos serviços públicos alimentam percepções negativas e reforçam práticas excludentes. Estudos demonstram que migrantes, muitas vezes, são vítimas de exploração laboral, recebendo salários inferiores aos dos trabalhadores locais e enfrentando dificuldades para acessar direitos básicos (Hall, 1997).
No cenário global, o Pacto Global para a Migração Segura, Ordenada e Regular, adotado pela ONU em 2018, representa uma tentativa de estabelecer diretrizes comuns para a governança migratória. O documento propõe princípios como a cooperação internacional, o respeito aos direitos humanos e a facilitação de migração regular. No entanto, sua adoção não foi unânime: países como os Estados Unidos e a Hungria rejeitaram o pacto, alegando que ele comprometeria sua soberania nacional (Guerrero, 2017).
Na União Europeia, a crise migratória iniciada em 2015 evidenciou a fragilidade das políticas de asilo. O Regulamento de Dublin, que determina que o país de entrada na UE é responsável pelo processamento do pedido de refúgio, sobrecarregou países do Mediterrâneo, como Grécia e Itália, e provocou tensões entre os Estados-membros. Enquanto algumas nações adotaram políticas mais acolhedoras, outras endureceram suas fronteiras, criando uma fragmentação nas respostas à crise humanitária (Goodwin-Gill, 2014).
A criminalização da migração irregular tornou-se uma prática recorrente em diversas partes do mundo. Leis mais rígidas, patrulhamento intensificado e centros de detenção superlotados tornaram-se características comuns das políticas anti migratórias. Em alguns países, migrantes e refugiados são submetidos a condições degradantes, sendo mantidos em campos de detenção sem acesso adequado à assistência jurídica e sanitária. A Human Rights Watch (2021) tem denunciado abusos sistemáticos, destacando a necessidade de reformulação das políticas migratórias para que estas sejam compatíveis com os princípios fundamentais dos direitos humanos.
Diante desse cenário, a questão que se impõe é: como garantir que os direitos dos migrantes sejam efetivamente protegidos em um mundo onde a migração é frequentemente tratada como um problema, e não como um direito? A resposta exige uma combinação de medidas legislativas robustas, políticas públicas inclusivas e mudanças culturais que combatam os preconceitos e promovam a integração. Como ressalta Hannah Arendt (1951), o “direito a ter direitos” não pode depender da nacionalidade ou do status migratório – ele deve ser uma garantia universal, assegurada a todos os indivíduos.
Portanto, a interseção entre direitos humanos e migração continua a ser um dos desafios mais complexos do século XXI. A busca por soluções justas e eficazes demanda esforços multilaterais e compromissos reais dos Estados, para que a dignidade e a segurança dos migrantes sejam prioridades, e não meras promessas diplomáticas. Somente assim será possível construir sociedades mais justas, solidárias e coerentes com os valores fundamentais da humanidade.
OS DESAFIOS ENFRENTADOS PELOS MIGRANTES E REFUGIADOS
A migração, para muitos, não é uma escolha, mas uma necessidade imposta pelas circunstâncias. O ato de deixar para trás a terra natal, os laços familiares e a identidade cultural em busca de segurança ou melhores condições de vida carrega consigo uma carga emocional e psicológica intensa. Entretanto, o que deveria ser uma jornada rumo à esperança frequentemente se converte em um caminho repleto de obstáculos, marcado pela vulnerabilidade extrema, pela hostilidade e pela exclusão. Migrantes e refugiados enfrentam desafios que se manifestam em diversas esferas – desde as barreiras burocráticas até a violência institucional e a exploração no trabalho informal.
O primeiro grande desafio está no próprio deslocamento. Muitas vezes, as rotas migratórias são perigosas, atravessando desertos escaldantes, mares traiçoeiros ou regiões dominadas pelo crime organizado. O Mediterrâneo, por exemplo, transformou-se em um verdadeiro cemitério para milhares de refugiados que tentam cruzá-lo em embarcações precárias, muitas das quais jamais chegam ao destino (UNHCR, 2022). A Agência da ONU para Refugiados estima que, em 2021, mais de 3.000 pessoas perderam a vida tentando atravessar essa rota, vítimas do abandono, da negligência e da política de fechamento de fronteiras (ACNUR, 2022).
Para aqueles que percorrem trajetos terrestres, como a rota migratória da América Central rumo aos Estados Unidos, os desafios são igualmente brutais. Além da fome, da exaustão e da escassez de recursos, esses migrantes frequentemente caem nas mãos de traficantes de pessoas e gangues criminosas, que veem na vulnerabilidade dessas populações uma oportunidade para exploração. Mulheres e crianças, em especial, estão mais expostas a abusos físicos e sexuais, sendo, muitas vezes, obrigadas a se submeter a condições análogas à escravidão para pagar as dívidas do percurso (Gambini, 2019).
Além dos perigos físicos, há ainda os obstáculos administrativos. Muitos países impõem processos de solicitação de asilo extremamente burocráticos e demorados, que deixam os requerentes em uma espécie de limbo jurídico, impossibilitados de trabalhar legalmente e vulneráveis à deportação. A falta de assistência jurídica adequada torna o acesso à proteção um verdadeiro desafio, especialmente em países que adotam uma postura restritiva em relação à imigração.
Uma vez que conseguem ultrapassar as fronteiras, migrantes e refugiados ainda precisam enfrentar a hostilidade nos países de acolhimento. Em muitos casos, eles são vistos como invasores, ameaçados à identidade nacional ou competidores desleais no mercado de trabalho. Esse tipo de percepção, alimentado por discursos políticos anti-imigração, contribui para a disseminação da xenofobia, da marginalização e da discriminação sistemática (Castles; de Haas; Miller, 2014).
Nos últimos anos, diversos líderes políticos adotaram narrativas populistas e nacionalistas, utilizando os migrantes como bodes expiatórios para justificar crises econômicas e sociais. Políticas de tolerância zero, deportações em massa e a construção de muros físicos e burocráticos tornaram-se cada vez mais comuns, dificultando a integração dessas populações (Bloch; Doná, 2019). Nos Estados Unidos, por exemplo, medidas como a separação de famílias migrantes na fronteira e a detenção de crianças em centros superlotados geraram indignação internacional, mas continuam sendo justificadas sob o pretexto da segurança nacional (Us immigration policy, 2020).
No Brasil, embora a Lei de Migração (Lei nº 13.445/2017) tenha estabelecido princípios de acolhimento humanitário, os desafios persistem. A onda de migração venezuelana, impulsionada pelo colapso econômico e político do país vizinho, trouxe à tona episódios de preconceito e violência. Em algumas cidades, migrantes foram alvo de ataques, acusações infundadas e até expulsões forçadas de assentamentos informais (Cavalcanti, 2020).
O acesso a serviços essenciais, como saúde, educação e moradia, é um dos maiores desafios para migrantes e refugiados. Em muitos países, a falta de documentação impede que essas populações acessem hospitais públicos, matriculem seus filhos em escolas ou aluguem moradias de forma legal. Mesmo quando há previsões legais garantindo esses direitos, a barreira do preconceito e da falta de informação muitas vezes impede sua efetivação (Martín, 2018).
No mercado de trabalho, a situação é ainda mais alarmante. Muitos migrantes acabam sendo explorados em empregos informais, sem contratos legais ou garantias trabalhistas. A precarização do trabalho entre refugiados não é um problema isolado: ela ocorre em diversas partes do mundo, desde a Europa até a América Latina. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que mais de 60% dos migrantes que trabalham em países em desenvolvimento estão na economia informal, sujeitos a condições degradantes, salários baixos e jornadas exaustivas (OIT, 2021).
No Brasil, há relatos de trabalhadores venezuelanos submetidos a condições análogas à escravidão em plantações agrícolas e fábricas têxteis. Em muitos casos, essas pessoas aceitam qualquer tipo de trabalho, pois não têm outra opção para sobreviver (Feltran, 2019). A ausência de políticas públicas efetivas que promovam a qualificação e a inserção profissional desses indivíduos apenas agrava o problema, perpetuando o ciclo de exclusão social.
A falta de políticas públicas eficazes para a inclusão de migrantes e refugiados é um dos maiores entraves para sua proteção. Embora diversos países tenham assinado tratados internacionais que garantem direitos básicos a essas populações, a implementação dessas normas enfrenta resistência política, falta de orçamento e desafios logísticos.
O Brasil, por exemplo, tem um arcabouço normativo avançado, mas sofre com dificuldades na aplicação das políticas migratórias. O processo de regularização documental ainda é burocrático, e o acesso a programas sociais é limitado. Além disso, a interiorização de refugiados, estratégia adotada pelo governo para redistribuir imigrantes venezuelanos para diferentes estados do país, nem sempre garante uma integração adequada, pois muitos desses indivíduos enfrentam dificuldades para encontrar emprego e moradia digna (Cavalcanti, 2021).
A criminalização da imigração irregular agrava ainda mais essa situação. Em vez de serem tratados como sujeitos de direitos, muitos migrantes são encarcerados ou deportados sumariamente, sem a devida análise de sua situação humanitária. Essa abordagem repressiva ignora os princípios básicos do Direito Internacional e contribui para a perpetuação da vulnerabilidade dos deslocados forçados (Goodwin-Gill, 2014).
POLÍTICAS DE PROTEÇÃO E O PAPEL DO ESTADO
A proteção dos direitos humanos dos migrantes e refugiados é um desafio de dimensão global, exigindo não apenas respostas emergenciais, mas também estratégias estruturais e políticas públicas inclusivas. Em um mundo marcado pela intensificação dos fluxos migratórios, seja por motivos econômicos, ambientais ou políticos, os Estados e organismos internacionais são convocados a atuar de forma coordenada para assegurar condições dignas de vida para essas populações. No entanto, o que se vê, na prática, é um cenário de desarticulação, em que muitas nações oscilam entre o acolhimento e o fechamento de fronteiras, entre a promoção dos direitos humanos e a adoção de medidas repressivas.
A Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU), aprovada em 2015, reconhece que a migração é um fenômeno indissociável do desenvolvimento global e estabelece objetivos específicos para a garantia de direitos fundamentais a migrantes e refugiados. Dentre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), destacam-se a erradicação da pobreza, a promoção da igualdade de oportunidades e o acesso universal a serviços essenciais, independentemente da nacionalidade ou status migratório (ONU, 2015). Contudo, para que tais metas sejam cumpridas, é imperativo que os Estados deixem de encarar a migração como um problema a ser contido e passem a vê-la como um fenômeno que exige governança eficaz e políticas baseadas nos princípios da dignidade e da cooperação internacional.
O PACTO GLOBAL PARA A MIGRAÇÃO: UMA RESPOSTA INTERNACIONAL
Em resposta ao aumento da vulnerabilidade dos migrantes em diversas regiões do mundo, a ONU adotou, em 2018, o Pacto Global para a Migração Segura, Ordenada e Regular, um marco nas políticas migratórias internacionais. Trata-se de um acordo não vinculante, mas que estabelece diretrizes fundamentais para a gestão da migração, enfatizando a necessidade de garantir os direitos humanos dos migrantes, independentemente de sua situação documental. Entre os princípios do pacto, destacam-se:
Entretanto, apesar de sua relevância, o pacto enfrentou resistência de diversos países, incluindo os Estados Unidos, que se recusaram a aderir ao documento sob a alegação de que ele representaria uma ameaça à soberania nacional. Essa postura reflete um dilema central nas políticas migratórias contemporâneas: até que ponto os Estados estão dispostos a cooperar para garantir a proteção dos migrantes sem comprometer sua autoridade sobre as fronteiras? (Hollifield; Martin, 2021).
A RESPONSABILIDADE DOS ESTADOS NA REGULARIZAÇÃO MIGRATÓRIA
A regularização da situação documental dos migrantes é um dos pilares para garantir sua inclusão e o respeito a seus direitos fundamentais. Sem documentos, esses indivíduos permanecem à margem da sociedade, sem acesso a trabalho formal, saúde ou educação. Em muitos casos, acabam expostos a exploração laboral, tráfico humano e deportações arbitrárias.
No Brasil, a Lei de Migração (Lei nº 13.445/2017) trouxe avanços significativos ao substituir o antigo Estatuto do Estrangeiro, que tratava da migração sob uma ótica securitária. A nova legislação estabelece princípios como a não criminalização da migração irregular, o acesso a direitos fundamentais e a facilitação do processo de regularização documental (Santos, 2020). No entanto, a implementação da lei enfrenta desafios, principalmente no que diz respeito à demora na concessão de vistos humanitários e na dificuldade de interiorização dos migrantes em diferentes regiões do país.
Um exemplo emblemático da necessidade de políticas mais eficazes é o caso da crise migratória venezuelana. Desde 2017, milhares de venezuelanos ingressaram no Brasil em busca de melhores condições de vida. O governo federal adotou medidas como a Operação Acolhida, que visa oferecer assistência humanitária e promover a integração desses migrantes. No entanto, muitos ainda enfrentam dificuldades para conseguir empregos formais e superar as barreiras da xenofobia e da exclusão social (Cavalcanti, 2021).
O PAPEL DA SOCIEDADE CIVIL E DAS ONGS NA PROTEÇÃO DOS MIGRANTES
Diante das falhas do Estado na implementação de políticas eficazes, a sociedade civil e as organizações não governamentais (ONGs) têm assumido um papel crucial na assistência a migrantes e refugiados. Organizações como a Cáritas, o Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH) e a Acnur Brasil atuam diretamente no acolhimento, fornecendo suporte jurídico, assistência psicológica e cursos de capacitação profissional.
Além disso, movimentos sociais têm desempenhado um papel fundamental na denúncia de violações de direitos humanos e na luta contra discursos xenofóbicos. A mobilização de redes de apoio tem sido essencial para garantir que migrantes recém-chegados consigam superar as barreiras iniciais impostas pela falta de documentação e pela dificuldade de inserção no mercado de trabalho (Piovesan, 2022).
Contudo, as ONGs também enfrentam desafios, como a falta de financiamento e a dificuldade de articulação com o poder público. Em muitos países, organizações humanitárias atuam em um contexto de criminalização da ajuda aos migrantes, sendo frequentemente acusadas de incentivar a imigração irregular (De genova, 2017). Esse cenário evidencia a necessidade de uma mudança de paradigma nas políticas migratórias, reconhecendo a importância da cooperação entre Estado e sociedade civil para garantir uma acolhida digna aos migrantes.
COMBATE À DISCRIMINAÇÃO E PROMOÇÃO DA INTEGRAÇÃO SOCIAL
A integração social dos migrantes vai além do acesso a documentos e serviços básicos – ela envolve também a construção de uma sociedade que reconheça e valorize a diversidade. Para isso, é essencial que os governos implementem políticas de combate à xenofobia e ao racismo estrutural, promovendo campanhas de conscientização e ações afirmativas para garantir que migrantes tenham as mesmas oportunidades que os cidadãos nativos.
Na Europa, alguns países têm adotado políticas de integração mais avançadas, como programas de incentivo ao empreendedorismo migrante e a oferta de cursos de idiomas gratuitos para facilitar a adaptação ao novo contexto cultural. No Brasil, apesar dos avanços legislativos, ainda há desafios na promoção da diversidade no mercado de trabalho, onde migrantes enfrentam dificuldades para conseguir empregos qualificados, mesmo quando possuem formação acadêmica (Castles; De haas; Miller, 2020).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os desafios enfrentados por migrantes e refugiados transcendem fronteiras, legislações e discursos políticos. São realidades que se entrelaçam à estrutura das sociedades contemporâneas, expondo fissuras nos sistemas jurídicos, nos modelos econômicos e nas políticas públicas. A migração, longe de ser um fenômeno excepcional, constitui uma dinâmica intrínseca à humanidade, refletindo desigualdades estruturais, conflitos geopolíticos e mudanças climáticas que reconfiguram territórios e populações. No entanto, o tratamento dispensado aos migrantes frequentemente oscila entre a criminalização e a negligência, revelando a incapacidade dos Estados de lidar com os fluxos migratórios sob uma perspectiva que priorize a dignidade humana.
Como enfatiza Hannah Arendt (1951), a figura do refugiado revela as fragilidades da ordem política internacional, desafiando a concepção tradicional de cidadania e demonstrando que o direito a ter direitos não deveria depender de um vínculo nacional. A luta dos migrantes pela regularização, pelo reconhecimento e pelo acesso a condições básicas de sobrevivência não é apenas uma questão humanitária, mas uma prova concreta da necessidade de repensar as políticas migratórias à luz dos princípios fundamentais da justiça e da igualdade.
O Direito Internacional dos Direitos Humanos oferece um arcabouço normativo robusto para a proteção dos migrantes, mas sua efetivação esbarra em desafios políticos, econômicos e institucionais. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) estabelece que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos” (art. 1º), mas, na prática, essa universalidade é frequentemente negada àqueles que cruzam fronteiras em busca de segurança ou oportunidades. A Convenção de 1951 sobre o Estatuto dos Refugiados e seu Protocolo de 1967 representam marcos fundamentais na proteção de deslocados forçados, determinando que nenhum indivíduo deve ser devolvido a um território onde sua vida ou liberdade esteja ameaçada. Ainda assim, a realidade dos refugiados é marcada por deportações arbitrárias, detenções ilegais e políticas migratórias cada vez mais restritivas (Goodwin-Gill; Mcadam, 2021).
No contexto latino-americano, a mobilidade humana tem assumido proporções alarmantes, sobretudo devido às crises humanitárias que assolam países como Venezuela, Haiti e Nicarágua. O Brasil, por meio da Lei de Migração (Lei nº 13.445/2017), tentou consolidar uma abordagem mais humanitária e garantista, assegurando direitos como acesso à saúde, educação e trabalho. No entanto, a implementação dessa legislação enfrenta entraves burocráticos, além de desafios relacionados à xenofobia e à precarização das condições de vida dos migrantes (Piovesan, 2019). O caso dos venezuelanos, que chegam ao país em situação de extrema vulnerabilidade, evidencia a necessidade de políticas públicas mais eficazes para garantir sua integração e proteção (Cavalcanti, 2021).
Diante desse cenário, a cooperação internacional torna-se um fator crucial para assegurar que os direitos dos migrantes sejam respeitados e efetivados. A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, da Organização das Nações Unidas (ONU), enfatiza a necessidade de garantir padrões de vida dignos para todos, incluindo aqueles em situação de mobilidade. O Pacto Global para a Migração Segura, Ordenada e Regular (2018) reforça o compromisso dos Estados com a criação de mecanismos que promovam uma migração segura e baseada no respeito aos direitos humanos. No entanto, a adesão a esses tratados não significa, necessariamente, sua implementação prática. Muitos países que assinam acordos internacionais continuam a adotar políticas internas que violam os princípios de proteção aos migrantes, demonstrando uma contradição entre discurso e ação (Castles; De haas; Miller, 2020).
A criminalização da migração irregular é um dos principais obstáculos à garantia dos direitos dos migrantes. Em diversas nações, indivíduos que atravessam fronteiras sem documentação adequada são tratados como criminosos, sujeitos a detenções prolongadas e deportações sumárias. Essa abordagem securitária ignora as causas estruturais da migração e contribui para a estigmatização dos migrantes, reforçando narrativas xenofóbicas que os associam a ameaças à segurança nacional e à economia. Como argumenta De Genova (2017), a construção social da “ilegalidade” migratória não é apenas um mecanismo de controle estatal, mas também um instrumento de exclusão e precarização da mão de obra migrante.
Além das barreiras jurídicas e institucionais, os migrantes enfrentam desafios cotidianos que comprometem sua dignidade e sua inserção social. A dificuldade de acesso ao mercado de trabalho, muitas vezes decorrente de restrições documentais ou do não reconhecimento de qualificações profissionais obtidas no exterior, leva muitos migrantes à informalidade e à exploração laboral. A falta de políticas públicas eficazes de acolhimento resulta em condições de moradia precárias, aumentando a vulnerabilidade dessa população. Como aponta Hollifield e Martin (2021), a marginalização dos migrantes não é apenas um reflexo das falhas das políticas migratórias, mas também um sintoma das desigualdades estruturais que permeiam as sociedades contemporâneas.
Para que os direitos dos migrantes sejam plenamente garantidos, é necessário um esforço conjunto entre Estados, organizações internacionais, sociedade civil e setor privado. A regularização migratória deve ser tratada como uma prioridade, assegurando que os migrantes tenham acesso a documentos que lhes permitam viver e trabalhar com dignidade. Políticas de inclusão devem ser implementadas, garantindo que essa população tenha acesso a serviços básicos, como saúde, educação e assistência social. Campanhas de conscientização são fundamentais para combater a xenofobia e promover uma cultura de acolhimento e respeito à diversidade.
O papel das organizações não governamentais (ONGs) e dos movimentos sociais na defesa dos direitos dos migrantes é inegável. Em muitos casos, essas entidades atuam como a única rede de suporte para aqueles que chegam a um novo país sem recursos ou contatos. No Brasil, iniciativas como a Cáritas, o Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH) e a Acnur Brasil desempenham um papel essencial na orientação jurídica, no acolhimento e na capacitação profissional de migrantes e refugiados. No entanto, o trabalho dessas organizações é frequentemente limitado pela falta de financiamento e pela ausência de apoio governamental, o que reforça a necessidade de uma maior articulação entre o poder público e a sociedade civil (Santos, 2020).
Por fim, é fundamental reconhecer que a migração não é um problema a ser contido, mas um fenômeno humano que deve ser compreendido e gerido de forma ética e responsável. A abordagem securitária e restritiva que tem predominado em muitas políticas migratórias não resolve as causas subjacentes da migração e, em muitos casos, agrava a vulnerabilidade dos migrantes. A construção de políticas migratórias justas e eficazes passa pelo reconhecimento da dignidade de cada indivíduo, independentemente de sua nacionalidade ou status documental.
A efetivação dos direitos dos migrantes exige não apenas o cumprimento das normas internacionais, mas também um compromisso genuíno com a justiça social. Como argumenta Bauman (2017), “a forma como tratamos os estrangeiros diz muito sobre quem somos como sociedade”. Se queremos construir um mundo mais justo e igualitário, devemos começar garantindo que aqueles que se deslocam em busca de uma vida melhor sejam recebidos com dignidade, respeito e solidariedade.
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