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Resumo
INTRODUÇÃO
A história da humanidade é marcada por sistemas de dominação profundamente enraizados em estruturas simbólicas e materiais que naturalizaram a subordinação de grupos inteiros, especialmente das mulheres, ao longo dos séculos. A violência de gênero, em suas múltiplas manifestações, não é um desvio episódico ou uma anomalia social, mas antes uma prática reiterada e estrutural, sustentada por discursos, instituições e relações de poder que se consolidaram historicamente. A construção social do patriarcado, ao se articular com outras formas de opressão — como o colonialismo, o racismo e a lógica capitalista — forjou um modelo de sociedade em que a dominação masculina se tornou não apenas hegemônica, mas funcional ao ordenamento do mundo moderno. Nesse contexto, pensar a violência contra a mulher exige mais do que denunciar os episódios de agressão; implica compreender os mecanismos que historicamente produziram e legitimaram tais práticas como parte de um sistema mais amplo de exclusão.
No centro dessa reflexão encontra-se a genealogia do patriarcado como regime de poder, um conceito que, segundo Foucault, opera não apenas pela repressão, mas pela produção de subjetividades e saberes. A leitura foucaultiana permite vislumbrar como o controle sobre o corpo feminino foi sendo instituído não apenas por força de leis e normas explícitas, mas também por práticas cotidianas, rituais religiosos, estruturas familiares e arranjos econômicos que normatizaram a desigualdade entre os sexos. Nesse sentido, Federici (2004) propõe uma reinterpretação da transição ao capitalismo, evidenciando que o processo de acumulação primitiva não se deu apenas pela expropriação dos camponeses, mas pela reconfiguração da posição social das mulheres, submetidas à violência sistemática, à perseguição das parteiras e ao disciplinamento de sua sexualidade. Essa leitura amplia o escopo tradicional da análise econômica e insere o corpo feminino como território de disputa política, ética e epistemológica.
Saffioti (2015), em diálogo com essa perspectiva, destaca que a violência contra a mulher é expressão objetiva do patriarcado como sistema que articula gênero e classe, estruturando a sociedade brasileira em bases hierárquicas. A autora argumenta que essa violência se apresenta como forma de manter o status quo, funcionando como corretivo disciplinar e instrumento de coerção afetiva, sexual, econômica e simbólica. É nesse ponto que se torna impossível dissociar as práticas de violência da organização mais ampla da sociedade. A naturalização da subalternidade feminina é alimentada por narrativas que a posicionam como objeto de cuidado, propriedade ou sacrifício, narrativas essas que perpassam desde os textos bíblicos até os manuais escolares e os discursos midiáticos contemporâneos.
A permanência desses discursos e práticas de controle ao longo dos séculos denuncia a força das estruturas que os sustentam. Joan Scott (1995) insiste que o gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder, sendo simultaneamente uma construção cultural e uma categoria útil para a análise histórica. Em sua abordagem, Scott mostra como o gênero funciona como operador simbólico que organiza a sociedade, definindo não apenas papéis, mas possibilidades de existência e reconhecimento. Essa chave interpretativa permite compreender por que a violência contra a mulher não é um resíduo de um passado bárbaro, mas uma manifestação atualizada de hierarquias persistentes.
No contexto brasileiro, essas permanências assumem características próprias, associadas à herança colonial e escravocrata que moldou as bases do país. Conforme argumenta Monteiro (2021), a urbanização excludente, o racismo estrutural e o patriarcalismo enraizado nas instituições públicas contribuíram para a perpetuação de um ambiente hostil às mulheres, sobretudo às negras e periféricas. A lógica senhorial, que regulava os corpos escravizados com extrema violência, deixou marcas profundas na forma como a sexualidade feminina é controlada, vigiada e punida. Como enfatiza Lira e Barros (2018), a mulher negra brasileira foi historicamente colocada na intersecção entre o desejo e a abjeção, sendo simultaneamente hipersexualizada e desumanizada. Essa construção não desapareceu com a abolição formal da escravidão; ao contrário, migrou para outras formas de controle, mais sutis e institucionalizadas.
Família, igreja e Estado formam um tripé institucional que, ao longo da história, funcionou como reprodutor das desigualdades de gênero. A idealização da mulher como esposa obediente e mãe devotada não apenas limita sua atuação social, mas legitima intervenções coercitivas em sua vida privada. A doutrina cristã, em especial, serviu como fundamento moral para a submissão feminina, sendo utilizada para justificar tanto a divisão sexual do trabalho quanto a disciplina física como forma de correção. Essa lógica atravessa os discursos jurídicos e penais, como se observa nas legislações históricas que toleravam a “correção” conjugal e reduziam o feminicídio a um crime passional. Conforme pontua Cunha (2014), o direito, longe de ser neutro, sempre refletiu e reforçou a dominação masculina, funcionando como instância de regulação da dissidência e de preservação da ordem patriarcal.
No campo jurídico, os avanços recentes, como a promulgação da Lei Maria da Penha (BRASIL, 2006a) e a tipificação do feminicídio (BRASIL, 2015), representam marcos importantes no enfrentamento da violência de gênero. Contudo, como alertam Cerqueira et al. (2015), a efetividade dessas normas esbarra nas resistências institucionais, na subnotificação dos casos e na persistência de uma cultura que culpabiliza a vítima. A violência simbólica, conceito cunhado por Bourdieu, também se faz presente nos atendimentos prestados por profissionais despreparados ou insensíveis, nos julgamentos morais sobre as escolhas das mulheres agredidas e na banalização da dor feminina em espaços públicos e privados. Como mostra Gomes et al. (2022), muitas mulheres permanecem em relacionamentos violentos não por passividade, mas por uma complexa rede de dependências, medos e ausências institucionais.
Diante desse panorama, a presente pesquisa se propõe a investigar os fundamentos históricos e estruturais da violência contra a mulher, compreendendo-a como fenômeno social enraizado em lógicas patriarcais de dominação. A pergunta central que orienta esta investigação é: de que modo a violência de gênero foi historicamente constituída como instrumento de controle do corpo feminino e de manutenção das relações de poder? Parte-se da hipótese de que a violência contra a mulher, longe de ser um fenômeno isolado ou espontâneo, é resultado de um processo de longa duração que articula discursos, práticas e instituições na legitimação da desigualdade de gênero.
O objetivo geral deste estudo é analisar a violência contra a mulher como expressão histórica das relações de poder, evidenciando suas raízes no patriarcado e suas atualizações nas estruturas sociais contemporâneas. Como desdobramentos analíticos, busca-se identificar os principais marcos históricos da construção patriarcal da sociedade ocidental; examinar os mecanismos de controle da sexualidade e da corporalidade feminina ao longo do tempo; e compreender como instituições como a família, a igreja e o Estado contribuíram — e ainda contribuem — para a reprodução da violência de gênero. Tais objetivos serão perseguidos por meio de uma pesquisa de cunho bibliográfico, ancorada em obras fundamentais da teoria feminista, estudos de gênero e história social, incluindo as autoras e documentos previamente indicados neste trabalho.
A relevância desta investigação se justifica por sua contribuição à consolidação de um campo teórico que articula história, política e gênero, promovendo uma leitura crítica das origens da desigualdade e dos dispositivos que a mantêm. No plano científico, o estudo amplia a compreensão sobre as permanências estruturais da violência, oferecendo ferramentas analíticas para o enfrentamento de um dos mais graves problemas sociais da contemporaneidade. No plano social, ao desnaturalizar a violência e evidenciar suas raízes históricas, o trabalho contribui para a formulação de políticas públicas mais sensíveis às especificidades das mulheres em diferentes contextos. Por fim, do ponto de vista teórico, ao dialogar com autoras que desafiaram os paradigmas dominantes — como Federici, Scott e Saffioti — a pesquisa afirma o lugar da crítica feminista como ferramenta de transformação e de produção de conhecimento comprometido com a justiça e a equidade.
A escolha pela abordagem bibliográfica não se dá por acaso: trata-se de uma estratégia metodológica que permite mergulhar nas diversas camadas interpretativas que a temática exige, mobilizando contribuições de distintas disciplinas e tradições teóricas. Como lembra Saffioti (2015), o enfrentamento da violência exige mais do que indignação; requer método, rigor e capacidade analítica para compreender os nexos entre o individual e o estrutural, o cotidiano e o histórico. Essa é a aposta deste trabalho: compreender para transformar, desvelar para resistir. E, talvez, ao recuperar os caminhos pelos quais se edificou a dominação masculina, abrir novas possibilidades de imaginar o mundo sem ela.
CORPOS, TERRA E PODER: A LONGA DURAÇÃO DO PATRIARCADO E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA DOMINAÇÃO MASCULINA
A trajetória da dominação masculina atravessa séculos e territórios sem jamais se apresentar como novidade. Pelo contrário, a naturalização dessa hierarquia é precisamente o que garante sua persistência. A genealogia do patriarcado exige, assim, um olhar que vá além da mera descrição de papéis sociais ou da denúncia de desigualdades pontuais. Trata-se de compreender o patriarcado como uma lógica histórica e política que estrutura o mundo moderno em suas dimensões mais profundas — do ordenamento jurídico às formas de subjetivação, da economia doméstica à violência legitimada pelo Estado. Tal entendimento implica historicizar a forma como o poder masculino se impôs como norma universal, deslocando a análise para os processos fundacionais que, sob a aparência da neutralidade, forjaram sistemas inteiros de exclusão (Scott, 1995).
Ao examinar o nascimento da modernidade europeia, torna-se impossível ignorar o papel central desempenhado pela reorganização da economia reprodutiva. A transição do feudalismo ao capitalismo, muitas vezes descrita em termos macroeconômicos, omite a violência fundadora exercida sobre os corpos femininos. Não se trata apenas da desapropriação dos camponeses de suas terras, mas da apropriação do corpo das mulheres como território estratégico de controle social e econômico. A caça às bruxas, a medicalização do parto e a normatização da sexualidade são episódios que, embora distintos, compartilham uma lógica comum: a supressão da autonomia feminina em prol da construção de uma força de trabalho disciplinada e de um regime de reprodução ajustado às necessidades do capital (Federici, 2004).
Esse processo histórico, embora ancorado na Europa do início da modernidade, não se limita a ela. Ele ressoa de forma particularmente intensa nos espaços coloniais, onde a dominação patriarcal se funde ao racismo e à lógica escravista. No Brasil, a violência de gênero foi sistematizada desde os primeiros momentos da colonização, operando como tecnologia de dominação e de produção social. O estupro de mulheres indígenas e africanas, por exemplo, não foi um efeito colateral, mas parte integrante da colonização enquanto projeto civilizatório e econômico. A mulher negra, nesse contexto, foi submetida a uma tripla opressão — de gênero, de raça e de classe —, tornando-se símbolo de uma violência estruturante e permanente (Lira; Barros, 2018).
A institucionalização do patriarcado não ocorre, entretanto, apenas por meio da força bruta. Há um trabalho ideológico sutil, persistente, que naturaliza a desigualdade ao inscrevê-la nas normas, nas linguagens e nos rituais da vida cotidiana. A Igreja, nesse processo, desempenhou papel decisivo. O discurso cristão sobre o pecado original, a pureza feminina e a sacralização da maternidade criou uma teologia da submissão que transcende o âmbito religioso. Ao prescrever condutas morais às mulheres e ao legitimar a autoridade masculina como expressão da ordem divina, o cristianismo consolidou uma ética patriarcal que se manteve mesmo após os processos de secularização do Estado (Monteiro, 2021).
O direito, longe de ser um espaço neutro ou de mediação justa, também se mostra cúmplice dessa lógica. Durante séculos, o ordenamento jurídico legitimou práticas como o poder marital, a tutela masculina sobre os bens da esposa e até mesmo a permissão para castigos físicos no âmbito doméstico. A mulher, reduzida à condição de incapaz, era tratada como propriedade — primeiro do pai, depois do marido. Essa concepção não foi abandonada com o advento das repúblicas modernas. Persistiu, muitas vezes de forma disfarçada, na dificuldade de acesso à justiça, na culpabilização das vítimas de violência sexual e na omissão estatal diante das agressões reiteradas. Como observa Cunha (2014), o direito historicamente se constituiu como um saber patriarcal, operando não como defesa das mulheres, mas como instrumento de sua contenção.
A família, por sua vez, tornou-se o laboratório privilegiado da reprodução das desigualdades de gênero. Não apenas por ser o espaço onde se naturalizam os papéis sociais — o homem provedor e a mulher cuidadora —, mas por operar como núcleo disciplinador dos corpos. A imposição da virgindade, o controle da sexualidade e a responsabilização exclusiva da mulher pelo trabalho reprodutivo e doméstico revelam o quanto a família funciona como instância de normatização da feminilidade. Essa normatização não é apenas cultural: ela tem efeitos materiais concretos, implicando na divisão sexual do trabalho, na desigualdade salarial e na sobrecarga das mulheres em múltiplas jornadas (Saffioti, 2015).
Ao longo do tempo, essas estruturas foram se sofisticando, adaptando-se às transformações históricas sem jamais perder sua essência hierárquica. Mesmo os momentos de ruptura — como as revoluções liberais ou as conquistas dos direitos civis — muitas vezes reafirmaram o patriarcado sob novas roupagens. A figura do cidadão, universal e abstrato, era na prática um homem branco, proprietário, heterossexual. As mulheres, ao reivindicarem participação nesses espaços, enfrentaram resistências que variavam entre a exclusão explícita e a coaptação simbólica. A conquista do direito ao voto, por exemplo, não significou a democratização da política, mas sim sua adaptação a novas formas de controle sobre a presença feminina na esfera pública (Kalil; Fonseca, 2023).
É nesse ponto que a contribuição teórica de Scott (1995) se mostra especialmente potente. Ao afirmar que o gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder, a autora revela como a desigualdade entre homens e mulheres não é apenas resultado de condições materiais, mas de estruturas simbólicas que moldam a percepção do mundo. O gênero, nesse sentido, opera como tecnologia de produção da diferença, definindo os limites do que é considerado possível, aceitável ou desejável para cada sexo. Tal concepção desloca o debate da desigualdade para o campo da epistemologia, desafiando as formas tradicionais de conhecimento e propondo uma crítica radical às categorias fundadoras da modernidade.
Esse deslocamento é essencial para compreender por que a violência contra a mulher não pode ser vista como anomalia, mas como dispositivo recorrente do poder patriarcal. O feminicídio, a violência doméstica, o assédio e o estupro não são desvios de conduta, mas sintomas de uma estrutura que autoriza e legitima o controle sobre o corpo feminino. Como demonstram Moroskoski et al. (2021), o aumento da violência física perpetrada por parceiros íntimos nos últimos anos revela não apenas uma crise relacional, mas uma reafirmação da autoridade masculina em contextos de perda simbólica de poder. Trata-se de uma reação ao avanço dos direitos das mulheres, operando como tentativa de restaurar a ordem patriarcal ameaçada.
Esse caráter reativo da violência também se manifesta no plano institucional. Mesmo diante de avanços legislativos, como a Lei Maria da Penha (BRASIL, 2006a), a resistência das estruturas de poder à plena aplicação dessas normas revela o quanto o Estado ainda opera sob lógicas patriarcais. A baixa efetividade das políticas públicas, a revitimização das mulheres nos atendimentos e a leniência do sistema de justiça diante de agressores reincidentes demonstram a persistência de uma cultura institucional que desvaloriza a denúncia feminina e prioriza a preservação da família em detrimento da integridade das mulheres (Campos, 2015).
A análise da trajetória histórica do patriarcado permite, portanto, identificar a violência contra a mulher como fenômeno de longa duração, que se reinventa sem perder sua lógica fundadora. A institucionalização dessa dominação se expressa tanto nas normas jurídicas quanto nas práticas cotidianas, tanto na cultura quanto na política, tanto no passado quanto no presente. Não se trata de um problema de comportamento individual, mas de uma arquitetura social que produz, legitima e reproduz a subordinação das mulheres. Diante disso, pensar alternativas exige mais do que boas intenções ou reformas pontuais. Exige, como sugerem os estudos feministas interseccionais, uma ruptura epistemológica e uma reconfiguração profunda das formas de pensar, viver e organizar a vida coletiva (Farias et al., 2022).
A genealogia do patriarcado, ao revelar os vínculos entre gênero, poder e história, oferece as chaves para essa reconfiguração. Ao desnaturalizar a dominação masculina, ela torna visível o que por séculos foi invisibilizado: a violência como norma, não como exceção; a desigualdade como projeto, não como falha. É nesse desvelamento que reside a força transformadora do pensamento crítico, capaz de confrontar os alicerces mais profundos do mundo que herdamos e, talvez, de imaginar outros porvir possíveis (Bandeira, 2014).
ARQUITETURAS DO SILÊNCIO: INSTITUIÇÕES, COLONIALIDADE E O CONTROLE HISTÓRICO DOS CORPOS FEMININOS
A longa duração da violência contra as mulheres exige mais do que uma análise moralizante ou sentimental. Impõe, com urgência, o desmonte conceitual dos dispositivos institucionais que sustentaram, ao longo dos séculos, a submissão dos corpos femininos a normas, vigilâncias e punições. Nesse sentido, não basta tratar a violência de gênero como um fenômeno isolado, episódico ou mesmo espontâneo. É preciso entendê-la como produto histórico, moldado por estruturas de poder que naturalizaram a dominação masculina como fundamento da ordem social. A dominação se exerce não apenas pela força física, mas por meio de instituições cuja função é organizar, normatizar e reproduzir desigualdades. Esse processo se revela ainda mais complexo quando situado em um país como o Brasil, onde a herança escravocrata, patriarcal e colonial persiste em códigos não ditos, mas largamente praticados (Monteiro, 2021).
Ao observar a construção histórica dessas estruturas, nota-se que a família foi erigida como primeira arena de disciplinamento do corpo feminino. Sua centralidade na formação da identidade social moderna decorre de seu papel ambivalente: espaço de afeto e, ao mesmo tempo, de coerção. Dentro dos muros domésticos, instaurou-se uma pedagogia da obediência, da moralidade e da contenção. A divisão sexual do trabalho, a imposição da maternidade compulsória e o monopólio masculino sobre a autoridade foram travestidos de natureza, transformando a opressão em destino. Tais práticas, no entanto, não emergem do nada: são legitimadas por discursos religiosos, normas jurídicas e políticas públicas que consolidam a família como unidade disciplinadora da feminilidade (Saffioti, 2015).
Esse disciplinamento ganhou força com o cristianismo, sobretudo na medida em que a Igreja católica se posicionou como mediadora das relações afetivas e sexuais. O corpo da mulher foi tratado como lugar de pecado e desordem, cabendo à Igreja a função de vigiar sua sexualidade e punir desvios. A figura da virgem, exaltada como modelo de pureza e obediência, foi contraposta à da mulher “pecadora”, que deveria ser corrigida, expurgada ou excluída. A confissão, a penitência e os dogmas sobre o papel da mulher no matrimônio consolidaram uma moral sexual repressiva que ainda ecoa em muitas comunidades religiosas. Essa teologia do controle cristalizou em normas e práticas que ultrapassam o espaço eclesial e influenciam diretamente decisões judiciais, diagnósticos médicos e condutas institucionais (Monteiro, 2021).
No Brasil colonial, essa lógica ganhou contornos ainda mais perversos. O Estado português, articulado à Igreja, estabeleceu um regime patriarcal que combinava a dominação de gênero com a racial. Mulheres negras e indígenas foram reduzidas à condição de objeto: sexualizadas, desumanizadas, violadas sistematicamente. A ausência de direitos, o apagamento de sua agência e a imposição de papeis servis criaram um padrão que, mesmo após a abolição, permanece nas práticas institucionais. A mulher negra, especialmente, foi posicionada como corpo disponível, servil, perigoso e indesejável. Essa construção imaginária alimentou políticas públicas excludentes, decisões judiciais enviesadas e práticas policiais seletivas que, até hoje, dificultam o acesso à justiça para mulheres racializadas (Lira; Barros, 2018).
O sistema jurídico, longe de operar como instância neutra ou de proteção universal, sempre esteve imerso em lógicas patriarcais. Por séculos, as leis brasileiras garantiram ao marido o direito de punir fisicamente a esposa, regulavam a sexualidade feminina sob a ótica da honra masculina e tratavam a mulher como incapaz civil. A própria tipificação do estupro, até meados do século XX, considerava o crime como ofensa à honra da família, não à integridade da vítima. Mesmo com os avanços legislativos recentes, como a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio, o sistema de justiça continua reproduzindo práticas revitimizantes, culpabilizando as mulheres e relativizando a violência. Como aponta Cunha (2014), o direito permanece enraizado em estruturas normativas que favorecem a manutenção das hierarquias de gênero.
É nessa persistência estrutural que se inscrevem as chamadas permanências coloniais. O colonialismo, mais do que um projeto territorial, foi uma maquinaria de produção de subjetividades e de hierarquização dos corpos. A classificação racial, a normatização da sexualidade e a violência como ferramenta de governo não desapareceram com a independência. Foram reconfigurados, incorporados às instituições nacionais e traduzidos em políticas seletivas de segurança, saúde, educação e justiça. No caso das mulheres, essa permanência se manifesta em abordagens policiais mais violentas nas periferias, em julgamentos morais sobre o comportamento da vítima e na ausência de políticas públicas interseccionais (Monteiro, 2021).
A atuação do Estado, nesse contexto, é ambígua. Por um lado, ele se apresenta como garantidor de direitos; por outro, perpetua desigualdades ao não implementar de forma efetiva as legislações já existentes. A criação de leis protetivas não garante, por si só, sua execução. Faltam delegacias especializadas, formação de profissionais, abrigos, rede de acolhimento e recursos financeiros. Como destacam Moroskoski et al. (2021), o aumento da violência física contra mulheres, especialmente durante a pandemia, revelou a fragilidade das respostas estatais e a negligência com que são tratados os direitos das mulheres. A falta de integração entre os serviços, a escassez de dados confiáveis e a ausência de uma política pública articulada agravam ainda mais o cenário.
O discurso institucional também colabora para a reprodução da violência. A ideia de que a mulher deve “preservar a família”, mesmo em contextos de agressão, é reiterada por profissionais de saúde, agentes da segurança pública e membros do judiciário. Esse tipo de discurso moralizante contribui para que muitas mulheres permaneçam em situações de violência por medo, culpa ou descrença nas instituições. Como observam Gomes et al. (2022), o cotidiano conjugal de mulheres em situação de violência é marcado por ambivalências, dependências emocionais, financeiras e institucionais que tornam a denúncia um ato de risco. A institucionalização da culpa, somada à impunidade dos agressores, cria um ambiente em que a violência se perpetua como parte da rotina.
A política pública, por sua vez, tem se mostrado insuficiente para romper com essa lógica. Ainda que documentos como o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres estabeleçam diretrizes importantes, sua implementação esbarra em resistências políticas, cortes orçamentários e falta de vontade institucional. A intersetorialidade, tão defendida nos discursos oficiais, raramente se concretiza na prática. Como evidenciam Farias et al. (2022), terapeutas ocupacionais que atuam com mulheres em situação de violência enfrentam uma série de desafios institucionais, como a ausência de protocolos, a invisibilidade das demandas e o despreparo das equipes. Essas barreiras revelam como o sistema público de atendimento reproduz desigualdades e, muitas vezes, revitimiza as usuárias.
O sistema educacional também desempenha um papel ambíguo. Se por um lado tem potencial para promover reflexões críticas sobre gênero, por outro ainda está profundamente marcado por práticas conservadoras. A ausência de uma abordagem sistemática sobre educação sexual, o silenciamento das questões de gênero nos currículos escolares e a resistência de setores religiosos à discussão sobre direitos das mulheres contribuem para a reprodução de estereótipos. A escola, ao evitar o debate sobre violência de gênero, reforça a ideia de que se trata de um problema íntimo ou moral, não de uma questão social e política. Essa omissão compromete a formação cidadã e perpetua a naturalização das desigualdades (Barros et al., 2021).
No campo da saúde, a violência institucional se expressa tanto nas omissões quanto nas intervenções. Mulheres vítimas de violência sexual, por exemplo, muitas vezes não recebem o atendimento adequado, enfrentando julgamentos morais, negação de serviços e burocracia excessiva. A Portaria nº 485, de 2014, do Ministério da Saúde, que estabelece diretrizes para o atendimento às vítimas de violência sexual, raramente é plenamente aplicada. Como mostram Pinto et al. (2017), o atendimento em saúde às mulheres vítimas de violência sexual ainda carece de protocolos efetivos, formação das equipes e sensibilidade ética. A patologização do sofrimento feminino, a medicalização da dor e o despreparo dos profissionais revelam a fragilidade do sistema em lidar com uma questão que exige escuta, acolhimento e articulação com outras políticas.
As instituições religiosas, longe de serem meras espectadoras, também cumprem um papel ativo na manutenção das hierarquias de gênero. Seja no aconselhamento matrimonial, seja na pregação doutrinária, muitas comunidades religiosas reproduzem discursos que culpabilizam a mulher e exaltam o sofrimento como virtude. A ideia de que “a mulher sábia edifica o lar”, comum em pregações evangélicas, serve como dispositivo de controle subjetivo, impedindo a ruptura com relações abusivas. Embora existam correntes religiosas engajadas na defesa dos direitos das mulheres, ainda prevalece, em muitos contextos, uma leitura fundamentalista que reforça o patriarcado. Essa leitura não só limita a autonomia feminina, como interfere em políticas públicas, bloqueando avanços legislativos e promovendo retrocessos nos direitos sexuais e reprodutivos (Bandeira; Almeida, 2013).
Nesse panorama, a atuação das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs) representa uma tentativa de institucionalização de políticas de enfrentamento à violência. No entanto, sua eficácia é limitada por fatores como falta de pessoal qualificado, sobrecarga de trabalho, infraestrutura precária e ausência de articulação com outras redes. Como demonstram os dados mapeados por Pasinato e Santos (2008), muitas delegacias não cumprem integralmente os protocolos estabelecidos, operando de maneira burocrática e distante da perspectiva de gênero. Essa desconexão entre o projeto político e a prática institucional impede avanços significativos no combate à violência.
A persistência da impunidade é outro fator que sustenta o ciclo de violência. A morosidade do sistema de justiça, os acordos de conciliação que desconsideram o histórico de agressões e a descrença generalizada na efetividade das denúncias criam um ambiente de descrédito e insegurança. Como apontam Cerqueira et al. (2015), embora a Lei Maria da Penha tenha reduzido o número de feminicídios em alguns contextos, sua efetividade está diretamente relacionada ao grau de comprometimento institucional. A ausência de dados atualizados, a falta de avaliação das políticas e o desmonte de estruturas de apoio dificultam o monitoramento e a qualificação das ações.
A imprensa também cumpre um papel importante nessa engrenagem. A espetacularização da violência, a exposição das vítimas e a reprodução de estereótipos reforçam narrativas que culpabilizam a mulher e romantizam o agressor. Reportagens que descrevem feminicídios como “crimes passionais” ou que enfatizam a “bela aparência” da vítima colaboram para a despolitização do problema. Essa abordagem midiática, ao mesmo tempo sensacionalista e superficial, transforma tragédias em entretenimento e compromete a compreensão crítica do fenômeno (Farias et al., 2022).
A genealogia das instituições revela, portanto, uma estrutura profunda e complexa de controle dos corpos femininos. A família, a igreja, o Estado, o sistema jurídico e os meios de comunicação compõem um aparato que não apenas tolera a violência, mas frequentemente a produz. Esse aparato é atravessado por dimensões de classe, raça, sexualidade e território, exigindo análises interseccionais e políticas públicas integradas. A persistência da violência de gênero não é falha do sistema: é o sistema operando exatamente como foi desenhado. Romper com essa lógica implica reformular profundamente as instituições, seus discursos, suas práticas e suas epistemologias (Scott, 1995).
O desafio, portanto, não está apenas em criar novas leis ou programas, mas em desconstruir os fundamentos simbólicos e materiais que sustentam a desigualdade. Isso passa pela formação crítica de profissionais, pela escuta das mulheres em situação de violência, pela revisão das práticas institucionais e pela radicalização do compromisso com os direitos humanos. É preciso tirar as instituições da zona de conforto, confrontando-as com sua própria história de omissão, conivência e violência. Apenas assim será possível reconstruí-las como espaços de justiça e dignidade (Saffioti, 2015).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em vista do exposto, a presente investigação demonstrou, com base em ampla fundamentação teórica e análise crítica, que a violência contra a mulher no Brasil está profundamente enraizada em estruturas institucionais que historicamente operaram — e ainda operam — como mecanismos de controle dos corpos femininos. O exame das permanências coloniais, articulado à atuação das instituições como família, igreja, Estado e sistema jurídico, evidenciou que a violência de gênero não se apresenta como fenômeno isolado, mas como expressão contínua de uma lógica patriarcal arraigada e multifacetada. O objetivo da pesquisa, ao analisar o papel das instituições na reprodução dessa violência estrutural, foi plenamente alcançado, permitindo compreender a extensão e a complexidade das dinâmicas que sustentam a desigualdade de gênero em contextos históricos e contemporâneos.
A hipótese inicial, que apontava a violência como uma estratégia de manutenção das relações de poder centradas na dominação masculina, foi confirmada pelos achados teóricos e pela articulação crítica das categorias analíticas mobilizadas. Observou-se que a ação institucional raramente rompe com os padrões hierárquicos herdados do passado colonial e patriarcal. Ao contrário, muitas vezes as instituições reproduzem seletivamente esses padrões, operando com omissões, resistências normativas e discursos moralizantes que fragilizam o enfrentamento da violência. Essa constatação, longe de sugerir um imobilismo das políticas públicas, reforça a necessidade de repensar profundamente seus fundamentos e formas de implementação, de modo a desarticular as camadas simbólicas, materiais e afetivas que sustentam o ciclo da violência.
A análise evidenciou, ainda, que os avanços legislativos, embora importantes, permanecem limitados diante da ineficácia das estruturas de acolhimento e da ausência de uma política intersetorial robusta. As contradições entre o que se normatiza e o que se realiza concretamente revelam que o aparato estatal continua refém de lógicas patriarcais, muitas vezes naturalizadas em suas práticas cotidianas. Essa tensão entre discurso e prática reforça a urgência de uma abordagem mais crítica e comprometida, que envolva não apenas mudanças legais, mas também transformações profundas na cultura institucional, na formação dos profissionais e no desenho das políticas públicas.
Entre as limitações da pesquisa, reconhece-se a impossibilidade de aprofundar a análise empírica de casos concretos, o que poderia enriquecer a compreensão dos modos pelos quais as mulheres enfrentam cotidianamente a violência institucional. A escolha metodológica, voltada à análise bibliográfica, foi adequada aos objetivos do trabalho, mas indica a importância de estudos futuros que articulem teoria e experiência vivida, especialmente em territórios marcados pela desigualdade racial, econômica e de acesso à justiça. O aprofundamento dessa linha de investigação poderá contribuir significativamente para a construção de respostas mais eficazes, contextualizadas e interseccionais.
Portanto, ao desvelar a dimensão estrutural da violência contra a mulher e evidenciar a participação ativa das instituições na sua reprodução, esta pesquisa reafirma a urgência de um reposicionamento epistemológico e político. Enfrentar o problema não significa apenas reformar instituições, mas transformar as formas de pensar, normatizar e governar os corpos. Os próximos passos da pesquisa devem caminhar nessa direção, produzindo conhecimento comprometido com a justiça de gênero e com a desconstrução das hierarquias que historicamente sustentam a desigualdade.
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