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Resumo
INTRODUÇÃO
Este estudo tem como problema de pesquisa a seguinte questão: “Quais são os principais desafios enfrentados pelo Sistema Único de Assistência Social (SUAS) em sua consolidação como política pública de direitos, e que perspectivas podem ser vislumbradas para o seu aperfeiçoamento?” A partir desse enfoque, busca-se analisar os aspectos estruturais, culturais e políticos que dificultam a efetivação de uma assistência social universal e efetiva no Brasil. A trajetória do SUAS, impulsionada pelas inovações constitucionais de 1988, rompeu com o modelo fragmentado e meramente assistencialista, inserindo a assistência social no âmbito da seguridade e reconhecendo-a como dever do Estado e direito do cidadão. No entanto, embora o marco legal tenha aberto caminho para uma política mais abrangente e equitativa, o país ainda enfrenta limitações significativas, como disparidades federativas, práticas clientelistas, déficit de profissionalização e financiamento instável. Esses fatores impactam diretamente o alcance dos serviços socioassistenciais, sobretudo nos territórios de maior vulnerabilidade, exigindo articulação eficaz entre União, estados, municípios e sociedade civil. Ademais, o embate entre concepções tradicionais de caridade e a visão de direitos impede a emancipação dos usuários, perpetuando barreiras históricas à autonomia e à participação social. Nesse panorama, o fortalecimento dos conselhos, a gestão compartilhada, a transparência na alocação de recursos e a qualificação continuada dos profissionais mostram-se indispensáveis para consolidar o SUAS como eixo de proteção social. Portanto, ao refletir sobre os desafios presentes e as possíveis estratégias de superação, este artigo visa contribuir para o debate acerca do aperfeiçoamento das políticas públicas de assistência, apontando caminhos que reforcem a inclusão, a justiça social e a dignidade da população mais vulnerável.
METODOLOGIA
Para responder ao problema de pesquisa “Quais são os principais desafios enfrentados pelo SUAS em sua consolidação como política pública de direitos, e que perspectivas podem ser vislumbradas para o seu aperfeiçoamento?”, adotou-se como procedimento metodológico a revisão bibliográfica acerca da política de assistência social no Brasil, com ênfase no Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Essa escolha fundamenta-se na relevância de reunir, analisar e interpretar as principais contribuições teóricas e empíricas sobre o tema, proporcionando uma visão crítica e aprofundada dos desafios e perspectivas do SUAS.
A revisão bibliográfica foi planejada de maneira a abarcar obras essenciais, incluindo livros, artigos científicos, dissertações, teses, relatórios técnicos e legislações relevantes, especialmente aquelas que se referem à Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS), à Política Nacional de Assistência Social (PNAS) e às normas operacionais do SUAS. As fontes consultadas foram selecionadas com base em sua pertinência temática, buscando cobrir aspectos históricos, conceituais, legais e operacionais relacionados ao campo da assistência social.
Nesse processo, a leitura analítica dos textos permitiu a identificação de eixos temáticos centrais para o debate, como a dimensão federativa do SUAS, o financiamento e a gestão dos serviços, as práticas culturais assistencialistas, o processo de profissionalização dos agentes da assistência social e a participação e controle social. A partir disso, foram organizados blocos de discussão que serviram de base para a estruturação das seções do artigo, orientando a exposição dos desafios e as possíveis soluções ou caminhos de aperfeiçoamento do sistema.
DESENVOLVIMENTO
Este artigo apresenta os desafios e as perspectivas do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), em especial após a Constituição Federal de 1988 redefinir a assistência social como um direito universal e um dever do Estado. Esse marco constitucional exigiu a articulação efetiva entre os diferentes níveis de governo para assegurar um atendimento amplo e equitativo. Ao tornar a assistência social um direito do cidadão e rejeitar sua condição de política residual e assistencialista, a Constituição incorporou a seguridade social como “conjunto integrado de iniciativas dos poderes públicos e da sociedade destinado a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”. Nos termos constitucionais, a seguridade social prevê “universalidade da cobertura e do atendimento e a uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais” (Brasil, CF 1988, Art. 194), o que ressalta a necessidade de coordenação e de políticas redistributivas voltadas a todos os brasileiros, independentemente de onde vivam.
O SUAS NO CONTEXTO FEDERATIVO E CONSTITUCIONAL
Entretanto, o contexto federativo brasileiro traz um desafio expressivo para a busca de universalidade e equidade na assistência social, pois cada ente federado possui autonomia política e distinta capacidade de financiamento e execução das políticas sociais. Nesse sentido, a coordenação federativa é indispensável ao sucesso da assistência social, demandando o protagonismo da União na definição de diretrizes gerais, na interlocução com estados e municípios e no estabelecimento de parâmetros para a distribuição de recursos (Soares; Cunha, 2016, p. 89).
Segundo Soares e Cunha (2016):
Vale reconhecer os desafios para a efetivação de sua gestão em um Sistema Único de Assistência Social (Suas). Parte dos desafios enfrentados está relacionada à dinâmica federativa. Não há um sistema estável de financiamento público da assistência social pela União, Estados e Municípios. Os estados, em sua maioria, têm avançado pouco no cumprimento de suas atribuições legais, o que inclui a execução de serviços regionalizados da proteção especial de média e alta complexidade, o cofinanciamento dos serviços, programas, projetos e benefícios eventuais e a coordenação dos municípios para o aprimoramento da gestão.
Amaro (2015) sustenta que, no cenário contemporâneo da Assistência Social, há obstáculos fundamentais que precisam ser superados para aprimorar a eficácia das políticas públicas. Dentre eles, destacam-se: (1) o processo de institucionalização da assistência no Brasil, influenciado por um modelo de Welfare State adaptado ao contexto brasileiro, cujas soluções nem sempre responderam adequadamente às demandas locais; (2) a cultura de tutela e assistencialismo, arraigada em práticas coronelistas e de “apadrinhamento” que perpetuam dependência e desigualdade; (3) a presença de casuísmo político e populismo, que frequentemente desviam o foco das ações sociais em favor de interesses eleitorais imediatos; e (4) a insuficiente qualificação dos profissionais que atuam na assistência social, dificultando a implementação de ações coerentes com padrões públicos de qualidade e comprometendo os serviços oferecidos (Amaro, 2015, p. 41). Esses fatores ilustram os entraves enfrentados ao longo de décadas para conter o avanço da pobreza — fenômeno que não apenas limita o crescimento econômico, mas compromete o desenvolvimento social do país. Para reverter esse quadro, é imprescindível reformar as estruturas vigentes, profissionalizar efetivamente os agentes da assistência e adotar políticas públicas verdadeiramente inclusivas e eficazes.
Já para Cruz e Guareschi (2016), o desafio de aprofundar e consolidar o SUAS é intransferível e essencial. Isso exige uma compreensão coletiva tanto das potencialidades quanto das limitações do campo assistencial no enfrentamento da pobreza, bem como um alinhamento com as dinâmicas impostas pela sociedade capitalista contemporânea. A consolidação do SUAS vai além da prestação de serviços e requer o desenvolvimento de políticas públicas que atuem nas causas estruturais da vulnerabilidade, promovendo a inclusão social de modo sustentável. Ademais, a eficiência do sistema depende de uma gestão sólida e de uma articulação constante entre os diferentes níveis de governo e a sociedade civil, o que inclui a formação contínua dos profissionais, o fortalecimento das redes de apoio comunitário e um financiamento adequado. A participação ativa da comunidade, por sua vez, garante maior aderência das políticas às necessidades locais, enquanto a transparência e o controle social fortalecem a confiança nas instituições, assegurando o uso justo e eficaz dos recursos (Cruz; Guareschi, 2016, p. 77).
CULTURA ASSISTENCIALISTA E AVANÇO DO SUAS COMO POLÍTICA DE DIREITOS
Com base nas ações historicamente realizadas no campo da Assistência Social e nos desafios políticos ligados à cultura assistencialista, profundamente arraigada na sociedade brasileira, torna-se fundamental salientar o papel do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) na consolidação da assistência como política de proteção social. De acordo com Da Silva Salgado, De Lima Albuquerque, Rodrigues Lins, De Souza e Da Silva Correia Netto (2021, p. 5), o SUAS representa um avanço notável ao romper com o assistencialismo tradicional, ao passo que estabelece uma política estruturada e alicerçada na garantia de direitos. Dessa maneira, fortalece-se a Assistência Social, tornando-a mais eficaz na promoção da inclusão e na proteção dos direitos dos indivíduos em situação de vulnerabilidade.
No que diz respeito a efetivação da política nacional articulada para uma área que, historicamente, esteve ligada a práticas de caridade e benemerência. Nesse cenário, a territorialidade ocupa lugar de destaque, não apenas por ser um critério geográfico de concentração de pobreza, mas também por ser um espaço de vida, contradições, resistências e participação. Reconhecer essa complexidade implica considerar que os territórios abrigam diferentes arranjos sociais, culturais e econômicos, demandando abordagens que contemplem as especificidades de cada localidade. Essa perspectiva territorial favorece a elaboração de políticas mais eficazes e ajustadas, bem como a articulação com outras políticas públicas, resultando em intervenções integradas e sinérgicas. Além disso, valorizar as resistências locais fortalece as capacidades comunitárias e fomenta a participação ativa e crítica no desenvolvimento e na implementação das políticas sociais. Conforme Cruz e Guareschi (2016, p. 73), a territorialidade, nesse sentido, se constitui em eixo central para a efetividade da Assistência Social, pois busca transcender o assistencialismo pontual e promover uma ação social transformadora.
Permanece a assistência social, na contemporaneidade, com fortes implicações dos modelos que se dispõe a ultrapassar, revisitada por hábitos clientelistas, eleitoreiros, prevaricatórios e meritocráticos(Amaro, 2015, p. 43 e 44).
Yasbek (2004) observa que a assistência social enfrenta um processo de assistencialismo e filantropia. Décadas de clientelismo consolidaram uma cultura tuteladora, desfavorável à autonomia e ao protagonismo dos usuários, perpetuando relações de dependência que os impedem de atuar como agentes ativos na melhoria de suas condições de vida. Em resposta a essa limitação, é indispensável redefinir a compreensão da assistência social enquanto um campo específico de política pública, planejado para suprir necessidades de forma estruturada e sistemática, além de promover o desenvolvimento integral dos indivíduos e comunidades. A superação desse paradigma requer reformulações contínuas nas práticas vigentes, investimentos na capacitação dos profissionais envolvidos e políticas que estimulem a participação efetiva dos beneficiários na construção de suas trajetórias (Yasbek, 2004, p. 19).
Ademais, conforme salientam Boscari e Da Silva (2015, p. 123), romper com a lógica do favor e integrar-se efetivamente à seguridade social constituem passos cruciais para estabelecer um sistema amplo de proteção social, articulado de maneira consistente com as demais políticas públicas.
TERRITORIALIDADE E ABORDAGEM INTERSETORIAL
Conforme Ericeira (2023), o processo de consolidação da Política de Assistência Social no Brasil foi se desenvolvendo, mesmo com fragilidades, em meio às diversas realidades territoriais, regionais, culturais, étnico-raciais, econômicas e sociais existentes no país. Nesse cenário, aspectos fundamentais como gestão, financiamento, controle social, formação continuada, uso de tecnologias de informação, gestão do trabalho, bem como sistemas de avaliação e monitoramento, foram objeto de intensos debates, buscando fortalecer a Política Nacional de Assistência Social (PNAS) no âmbito da proteção social brasileira. Tais discussões não visavam apenas aprimorar a eficiência e eficácia dos serviços prestados, mas também garantir que a assistência social assumisse efetivamente o caráter de direito de cidadania, tornando-se acessível a todos os brasileiros, independentemente de localização geográfica ou condição socioeconômica.
Desse modo, a política de assistência social passou a conquistar legitimidade em meio ao confronto entre o modelo tradicional — marcado por clientelismo e filantropia — e a nova proposta de assistência, encarada como política de Estado. Essa concepção busca romper com o histórico assistencialista, firmando a assistência social como elemento essencial na promoção da justiça social e na redução das desigualdades. Para tanto, torna-se indispensável a integração de elementos estruturantes, como a capacitação contínua das equipes, a adoção de tecnologias avançadas de informação e a efetiva operacionalização de sistemas de avaliação e monitoramento. Além disso, a consolidação da PNAS depende da participação ativa da sociedade civil, por meio dos conselhos e conferências, e do fortalecimento dos mecanismos de controle social. Esses espaços participativos asseguram transparência, corresponsabilidade e legitimidade na gestão das políticas públicas.
Portanto, a política de assistência social no Brasil atravessa hoje um estágio decisivo de transformação, no qual a legitimidade alcançada precisa ser permanentemente reforçada por meio de implementação eficaz e pela melhoria contínua de suas diretrizes. Em última instância, o objetivo permanece em atender às necessidades e garantir os direitos da população mais vulnerável (Ericeira, 2023, p. 17).
GESTÃO, FINANCIAMENTO E DESAFIOS NA EXECUÇÃO
Cruz e Guareschi (2016) destacam que uma gestão integrada e eficiente dos recursos exige articulação contínua entre os diferentes níveis de governo e a sociedade civil, de modo a evitar a sobreposição de serviços e assegurar ações complementares e abrangentes. Por fim, a sustentabilidade das ações e a capacidade de adaptação às transformações sociais e econômicas figuram como desafios permanentes, exigindo soluções inovadoras e flexíveis nos modelos de gestão. Nesse sentido, Soares e Cunha (2016, p. 104) complementam:
[…] maior envolvimento dos estados: na divisão federativa de responsabilidades e esforços para a consolidação do SUAS, é evidente o papel preponderante do Governo Federal na regulação e coordenação das relações intergovernamentais e o progressivo comprometimento dos municípios com a implementação do SUAS.
Soares e Cunha (2016, p. 104) enfatizam a necessidade de aperfeiçoar a gestão municipal, visto que, embora a esfera local seja a principal responsável pela execução dos serviços, os municípios têm demonstrado padrões heterogêneos e, por vezes, insuficientes na condução da política de assistência social.
Outro fator que a Assistência Social enfrenta, referente ao financiamento, é o problema de não instituir critérios claros para a transferência de recursos federais destinados ao custeio dos serviços nos níveis subnacionais, através de pisos. A adoção desses pisos vincula recursos a serviços específicos, limitando a autonomia municipal na definição de uma rede de serviços adequada às realidades locais. Embora seja defensável a busca por um conjunto de serviços essenciais disponíveis em todo o território nacional, garantindo um piso financeiro a todos os municípios, é fundamental que o significado desse padrão mínimo, a forma de sua implementação e o grau de autonomia subnacional sejam temas de debate contínuo e pactuação nos fóruns de deliberação. (Soares; Cunha, 2016, p. 103).
Conforme Ericeira (2023, p.18)
Os recursos orçamentários para o cofinanciamento do Sistema Único de Assistência Social sofrem tanto com redução como com descontinuidades nos repasses.
A realidade atual demonstra uma marcante contradição entre as urgentes necessidades sociais e as prioridades econômicas estabelecidas pelo Estado. Setores vitais como saúde, educação e assistência social sofrem com limitações orçamentárias agudas, enquanto o mercado financeiro beneficia-se de suporte substancial e contínuo. Essa discrepância não apenas acentua a desigualdade social, mas também enfraquece a eficácia das políticas de seguridade social destinadas a atender os mais necessitados. Diante desses desafios, torna-se essencial implementar uma estratégia de financiamento integrada e sustentável que supere a dependência de contribuições sociais e promova uma distribuição de recursos mais justa. Isso deve incluir reformas fiscais que ampliem a contribuição dos segmentos mais favorecidos da sociedade, bem como a criação de dispositivos que assegurem a alocação prioritária de verbas para setores sociais. Além disso, é crucial fortalecer os mecanismos de controle social e de participação cidadã, assegurando que a população exerça influência direta na definição de prioridades orçamentárias e na supervisão da aplicação das políticas públicas. Apenas com um comprometimento coletivo e uma orientação política focada na justiça social será possível evoluir para a construção de um sistema de seguridade social que seja verdadeiramente universal e inclusivo (Paiva, Vaz, Bertollo, Biondo, Nunes, 2012, p. 11).
PARTICIPAÇÃO SOCIAL E CONTROLE DEMOCRÁTICO
Soares e Cunha (2016) ressaltam que, apesar de certos avanços, a gestão participativa e deliberativa na formulação e implementação da política nacional de assistência social ainda carece de aperfeiçoamento. Os conselhos e conferências de assistência social, enquanto inovações institucionais, exercem papel fundamental ao democratizar o planejamento público e possibilitar a deliberação sobre o orçamento na área. Esses espaços fortalecem a interação entre sociedade e Estado, promovendo maior transparência e controle das ações públicas. Contudo, é necessário consolidar esses fóruns deliberativos, estabelecendo claramente seus campos de atuação para evitar conflitos com outras instâncias, a exemplo das Comissões Intergestores (CIB e CIT) quando se discute o financiamento da política. Também se faz urgente avançar na gestão deliberativa do planejamento e da implementação das políticas, além do monitoramento e avaliação de seus resultados, assegurando maior eficiência e eficácia na assistência social (Soares; Cunha, 2016, p. 104).
Coelho (2015) destaca que, desde a Constituição Federal, a assistência social segue diretrizes que incluem a participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação e no controle das políticas em todos os níveis. Tal princípio não apenas garante a inclusão social no processo decisório, mas também aprofunda o debate sobre o fortalecimento da democracia em contextos cada vez mais complexos e dinâmicos. Durante o período de transição da Ditadura Militar para a retomada da democracia no Brasil, marcado por forte ativismo da sociedade civil, surgiram mecanismos de participação social voltados a romper com práticas autoritárias e promover maior transparência e inclusão na gestão pública. É nesse cenário que conselhos setoriais, conselhos de direitos e conferências se consolidaram como as principais formas de participação social nas políticas sociais brasileiras.
Esses espaços institucionalizados permitem que diversos segmentos sociais contribuam de maneira estruturada para o desenvolvimento e aprimoramento das políticas públicas. Contudo, além de conselhos e conferências, há outras formas de participação direta da sociedade civil, ainda que em menor escala, como movimentos sociais, organizações não governamentais e fóruns comunitários, todas essenciais para impulsionar a cidadania ativa e salvaguardar os direitos sociais. Para reforçar esse processo participativo, faz-se imprescindível investir na capacitação continuada dos representantes da sociedade civil, promover transparência e assegurar que todas as vozes — em especial as mais marginalizadas — sejam ouvidas. Somente assim será possível construir uma democracia efetivamente participativa e uma assistência social mais justa e eficaz (Coelho, 2015, p. 99).
No entanto, Da Silva et al. (2009, p. 255) observam que “a própria concepção de controle social ainda não é consensual entre os diferentes atores da política de Assistência Social”, o que ocasiona divergências em seu desenvolvimento e gera obstáculos à sua plena efetivação.
Coelho (2015, p. 112) observa que a participação social ainda encontra obstáculos relevantes para articular as demandas da sociedade com os atores decisórios na esfera política. Um exemplo disso é a interferência governamental na escolha e na eleição de representantes não governamentais nos conselhos, indicando uma resistência em permitir que esses espaços reflitam as reais necessidades da sociedade civil. Soma-se a esse quadro o baixo estímulo para que os usuários ocupem instâncias participativas, bem como a carência de transparência e comunicação, tanto do governo em relação ao conselho quanto do conselho em relação à sociedade. No âmbito das conferências, a adoção irrestrita das diretrizes emanadas pelo Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), sem considerar especificidades locais, limita seu alcance e prejudica a incorporação efetiva dos princípios do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) no que tange à participação social. Para superar esses entraves, não basta criar novas estruturas; é essencial uma mudança de postura acerca dos espaços participativos, encarando-os como legítimas arenas de disputa política e apoio à ação governamental. Isso envolve promover a autonomia dos conselhos, incentivar a participação ativa dos usuários e aperfeiçoar a comunicação e a transparência em todos os níveis. Além disso, é fundamental que conferências e demais mecanismos de participação social sejam adaptados às particularidades locais, possibilitando um processo de formulação e implementação de políticas públicas mais contextualizado e efetivo.
PROFISSIONALIZAÇÃO, RECURSOS HUMANOS E VALORIZAÇÃO NO SUAS
A questão dos recursos humanos devidamente profissionalizados, com contratos de trabalho sólidos e garantias para os trabalhadores do serviço público, representa um desafio considerável para a administração pública brasileira. Tal dificuldade é ainda mais acentuada no âmbito da assistência social, que abrange trabalhadores vinculados às três esferas de governo e a inúmeras entidades privadas atuantes na área. A heterogeneidade dos recursos humanos — seja em termos de formação ou de condições laborais — caracteriza historicamente esse campo, marcado por um processo de desprofissionalização. Ainda assim, tanto a Política Nacional de Assistência Social (PNAS) quanto o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e a Norma Operacional Básica de Recursos Humanos (NOB/RH) enfatizam a necessidade de enfrentar tais condições adversas, ressaltando a importância de formação continuada e de melhores condições de trabalho para impulsionar a qualidade das ações socioassistenciais.
Conforme Raichelis, Couto e Yazbek (2012, p. 453-460), o investimento em capacitação permanente e a garantia de condições adequadas de trabalho não apenas reforçam a competência técnica e ética dos trabalhadores, mas também asseguram a eficácia do atendimento, contribuindo para a formulação de políticas públicas mais responsivas às necessidades da população e comprometidas com a justiça social. Nessa mesma perspectiva, Soares e Cunha (2016, p. 104-105) acrescentam que a falta de profissionais capacitados constitui outro entrave relevante para a política de assistência, tanto no setor público quanto no setor privado.
Raichelis, Couto e Yazbek (2012) apontam que ainda há um contingente expressivo de profissionais sem vínculos sólidos com a área de assistência social, muitos dos quais mantêm uma visão conservadora da política. A carência de conhecimentos teórico-técnicos atualizados sinaliza a urgência de uma política permanente de qualificação. Para tanto, torna-se imprescindível criar instâncias de capacitação continuada, sob responsabilidade dos governos estadual e federal, assegurando a formação adequada e a atualização constante desses profissionais. Adicionalmente, a alta rotatividade de trabalhadores, mesmo quando são admitidos por concurso público, evidencia um problema crítico: a falta de mecanismos institucionais de reconhecimento e valorização da carreira, como planos de progressão e políticas salariais condizentes. A ausência desses dispositivos desmotiva os profissionais, culminando na perda de talentos e fragilizando a implantação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Esse quadro compromete tanto a efetividade quanto a continuidade das políticas sociais, dificultando a construção de um modelo sólido e eficaz de assistência.
Para contornar essas barreiras, faz-se necessário que os gestores públicos promovam um ambiente de trabalho mais estável e que valorize o mérito dos servidores. Tal esforço não apenas aprimora a execução do SUAS, mas também contribui para a oferta de um serviço socioassistencial mais competente e comprometido com a justiça social e o bem-estar da população (Raichelis, Couto, Yazbek, 2012, p. 453–460).
REFLEXÕES SOBRE OS DESAFIOS ATUAIS E PERSPECTIVAS FUTURAS
Amaro (2015) destaca que os desafios da política social no novo século transcendem a simples projeção futura; eles se ancoram fundamentalmente na necessidade de superar equívocos históricos, revisitando problemas antigos para encontrar soluções mais eficazes. Dentre esses desafios, figura a necessidade de fortalecer o controle social exercido pelos usuários na gestão e financiamento das políticas assistenciais, bem como responder ao fenômeno da refilantropização, que tem marcado a agenda da assistência social. Adicionalmente, a perspectiva neoliberal que guia os ajustes e cortes nos gastos sociais tem agravado essas questões, alimentando a expansão de soluções privatistas para combater a pobreza e a exclusão social. Este panorama é uma preocupação constante entre os assistentes sociais, que se veem no centro da execução dessas políticas. A tendência do Estado de minimizar sua atuação no campo social, optando por fomentar a solidariedade ampla ou parcerias com o setor privado, desencadeia uma crise nos fundamentos dos direitos sociais. Tal situação revela a contradição entre o dever estatal de garantir direitos e a propensão para delegar responsabilidades ao setor privado, comprometendo a eficácia e justiça das políticas sociais. A dependência de parcerias privadas e a redução do financiamento público diminuem a capacidade do Estado de cumprir seu papel como garantidor de direitos, perpetuando a desigualdade e questionando a essência das políticas sociais como ferramentas de promoção da justiça e equidade. Portanto, é vital que formuladores de políticas e gestores públicos trabalhem no fortalecimento e reforma das estruturas existentes, assegurando que a assistência social seja mais que um suporte paliativo, mas um instrumento eficaz de transformação social. Isso exige uma abordagem integrada que promova a inclusão e o empoderamento dos cidadãos, garantindo a todos uma vida digna e repleta de oportunidades (Amaro, 2015, p. 81).
Broto, Sposati e Senna (2016, p. 24) corroboram que o desenvolvimento do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) deve avançar significativamente para responder de forma eficaz às demandas que lhe são atribuídas. Apesar dos progressos significativos, o caminho a ser percorrido é longo e desafiador. Os obstáculos enfrentados não são meramente técnicos ou operacionais, mas emergem de um contexto histórico de experiência democrática limitada e desigualdades sociais profundas. Olhar para o futuro sem ilusões implica reconhecer que a política social é uma construção permeada por conflitos de interesses. Assim, as políticas sociais não derivam apenas de decisões técnicas ou administrativas; elas são moldadas por uma complexa rede de forças políticas, econômicas e sociais que refletem os interesses e as prioridades de diversos grupos e atores sociais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A consolidação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) no Brasil revela-se como um processo em constante construção e marcado por desafios históricos, políticos e culturais. Ao longo deste artigo, foi possível observar que, embora a Constituição Federal de 1988 tenha redefinido a assistência social como um direito universal e um dever do Estado, as disparidades federativas, a limitação de recursos e as assimetrias de poder ainda dificultam a universalização e a equidade na prestação dos serviços. Nesse cenário, o protagonismo da União na definição de diretrizes gerais e a participação ativa de estados e municípios mostram-se essenciais para garantir o financiamento, a coordenação e a execução de programas e projetos voltados à população vulnerável.
O debate em torno da cultura assistencialista evidencia a necessidade de superar práticas clientelistas e caritativas, bem como de reforçar a assistência social enquanto política pública de direitos. Sob essa ótica, o SUAS oferece uma estrutura inovadora, ao consolidar diretrizes e normativas que buscam garantir a integralidade do atendimento e a proteção social. Entretanto, há de se considerar que tais avanços enfrentam a resistência de concepções tradicionais, reforçando a importância de aprimorar estratégias educativas e comunicacionais, capazes de difundir uma visão mais emancipadora e menos tuteladora do usuário.
Outro ponto crucial é a abordagem territorial e intersetorial, que reconhece as diversidades regionais, culturais e socioeconômicas do país. Essa perspectiva não apenas amplia o alcance das políticas, mas também contribui para soluções contextualizadas e mais eficazes. Nesse aspecto, a integração com outras áreas, como saúde, educação e trabalho, agrega valor às ações do SUAS, promovendo uma atuação coerente e assertiva nos territórios de maior vulnerabilidade. Tal integração, entretanto, demanda maior articulação entre gestores, conselhos, entidades e movimentos sociais, a fim de alinhar diretrizes e otimizar os recursos disponíveis.
No que se refere à gestão e ao financiamento, observou-se a relevância de estabelecer critérios claros para repasses, por meio de pisos que garantam a autonomia local, mas sem negligenciar a transparência e o controle social. A participação cidadã e os conselhos setoriais surgem como mecanismos fundamentais para o planejamento democrático e a fiscalização dos recursos, embora ainda enfrentem obstáculos, como a baixa adesão de usuários e a influência governamental nas indicações. A criação de espaços efetivos de decisão e controle, que contemplem as especificidades de cada município, constitui estratégia essencial para combater práticas clientelistas e promover maior envolvimento da sociedade civil.
A profissionalização e a valorização dos trabalhadores da assistência social representam outro pilar indispensável. A formação continuada, a definição de planos de carreira e a melhoria das condições de trabalho são fatores determinantes para assegurar a permanência e a motivação desses profissionais, cuja atuação impacta diretamente na qualidade dos serviços prestados. A alta rotatividade e a falta de reconhecimento institucional prejudicam tanto a implantação de políticas quanto o vínculo com os usuários, que dependem de atendimento consistente e embasado em princípios éticos e técnicos.
Por fim, ao observar a amplitude dos desafios e as possíveis propostas de aperfeiçoamento, verifica-se que a consolidação do SUAS requer um investimento contínuo em elementos estruturantes: coordenação federativa sólida, recursos financeiros estáveis, práticas democráticas de participação e controle, ruptura com a tradição assistencialista e, sobretudo, um olhar estratégico voltado às causas estruturais da pobreza e das desigualdades. Com isso, espera-se que o SUAS se firme como eixo de proteção social efetiva, ampliando direitos, fortalecendo a cidadania e promovendo maior justiça social. Nesse sentido, a consolidação de uma assistência social universal e efetiva torna-se viável somente a partir da articulação entre Estado e sociedade civil, alicerçada em compromissos políticos consistentes e na defesa inegociável dos princípios democráticos e dos direitos humanos.
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