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Resumo
INTRODUÇÃO
A Educação Física escolar tem se consolidado como um campo privilegiado para o desenvolvimento integral dos estudantes, especialmente por seu potencial de promover experiências motoras, cognitivas, afetivas e sociais. Nesse cenário, a inclusão se apresenta como um princípio norteador das práticas pedagógicas contemporâneas, exigindo dos educadores estratégias capazes de contemplar as diferentes singularidades dos alunos.
A competição, historicamente, foi entendida muitas vezes como uma prática excludente no ambiente escolar, sobretudo por acentuar o desempenho, a vitória e a comparação entre os alunos. No entanto, estudos mais recentes indicam que, quando conduzida de forma pedagógica, reflexiva e adaptada, a competição pode ser um instrumento de inclusão, favorecendo a participação ativa de todos os estudantes, inclusive daqueles com dificuldades de aprendizagem, limitações físicas ou desafios sociais.
Segundo Darido e Rangel (2005), a Educação Física deve valorizar a diversidade dos sujeitos e construir propostas metodológicas que superem a lógica da exclusão. A competição, nesse sentido, pode ser ressignificada, deixando de ser um fim em si mesma e tornando-se um meio de promover o engajamento, o respeito às diferenças e o desenvolvimento de habilidades socioemocionais.
Dessa forma, este artigo tem como objetivo analisar, com base em pesquisa bibliográfica, como a competição pode ser utilizada como um incentivo para a inclusão nas aulas de Educação Física, partindo do princípio de que, sob uma abordagem crítica e formativa, ela pode contribuir para uma prática mais democrática, equitativa e significativa.
A EDUCAÇÃO FÍSICA E OS PRINCÍPIOS DA INCLUSÃO
A inclusão nas aulas de Educação Física representa um desafio e uma necessidade pedagógica diante da diversidade presente nas escolas. A proposta inclusiva não se limita a colocar todos os alunos no mesmo espaço, mas demanda práticas pedagógicas que considerem as especificidades de cada estudante. A Educação Física, por trabalhar com o corpo, o movimento e as relações sociais, tem grande potencial para fomentar uma cultura escolar verdadeiramente inclusiva.
Segundo Silva e Ferreira (2014), a prática inclusiva deve “considerar as condições reais dos alunos, seus ritmos, suas possibilidades de expressão corporal e seus limites, garantindo-lhes a participação ativa nas aulas com significado e respeito à sua individualidade”.
Complementando essa visão, Kunz (2010) ressalta a importância de se compreender a Educação Física como uma prática pedagógica voltada à formação cidadã. Para ele, “a Educação Física escolar deve constituir-se como um espaço de superação da exclusão, promovendo a emancipação dos sujeitos por meio da vivência crítica das práticas corporais” (Kunz, 2010, p. 43).
A Lei nº 13.146/2015 — o Estatuto da Pessoa com Deficiência — reforça esse compromisso ao assegurar que a educação seja oferecida de forma inclusiva em todos os níveis, proibindo qualquer forma de exclusão por motivo de deficiência. Nesse contexto, a Educação Física não pode ser exceção. É necessário que os professores adotem estratégias didáticas capazes de integrar todos os alunos às atividades, valorizando suas contribuições e reconhecendo suas necessidades.
A COMPETIÇÃO COMO ESTRATÉGIA EDUCACIONAL
A competição, embora frequentemente associada à exclusão e à elitização do esporte, pode se tornar uma aliada do processo educacional, desde que ressignificada. A abordagem pedagógica da competição não deve estar voltada unicamente para o resultado final, mas sim para o processo, para o engajamento, para o esforço e para as aprendizagens construídas ao longo da atividade.
Segundo Darido (2003), “a competição, quando bem orientada, pode contribuir significativamente para o desenvolvimento de valores como a cooperação, o respeito mútuo e a solidariedade, desde que o foco seja a participação de todos e não apenas a vitória de alguns”.
Nesse sentido, Bracht (1999) propõe que a competição seja integrada ao conteúdo da Educação Física de maneira crítica e dialógica. Em uma de suas reflexões mais marcantes, afirma:
A simples condenação da competição ignora que ela é um elemento cultural presente em diversas manifestações sociais e esportivas. O que se deve questionar não é a existência da competição, mas a sua forma de organização, os valores que a sustentam e os objetivos que ela busca atingir na escola (Bracht, 1999, p. 78).
Essa perspectiva abre espaço para uma nova leitura da competição: uma ferramenta que pode favorecer o desenvolvimento de competências socioemocionais, como a empatia, a resiliência e o respeito à diversidade, especialmente quando mediada por um professor que compreende seu papel formador.
A DUALIDADE COMPETIÇÃO E COOPERAÇÃO: UM FALSO DILEMA
A dicotomia entre competição e cooperação tem sido abordada de forma equivocada por muitos educadores, como se fossem conceitos incompatíveis. Contudo, a literatura aponta que ambas podem coexistir de maneira saudável e construtiva, desde que planejadas pedagogicamente.
Freire (1996) já nos alertava que os opostos não precisam ser vistos de forma excludente. Para o autor, “é preciso que o educador vá além da aparência e descubra as contradições que movem a realidade, construindo práticas que superem o dualismo e apontem para a transformação” (Freire, 1996, p. 84).
Seguindo essa linha de pensamento, Cratty (2002) argumenta que “a competição, em ambientes educacionais bem estruturados, pode contribuir para a socialização dos alunos e para o desenvolvimento de habilidades interpessoais, desde que venha acompanhada de elementos cooperativos e éticos”.
Além disso, a proposta de uma “competição cooperativa” tem sido explorada por diversos estudiosos da pedagogia do esporte. Esses autores defendem que é possível construir jogos e atividades que contenham desafios competitivos sem excluir a dimensão coletiva e participativa da prática corporal. Um exemplo disso são os jogos adaptados, às regras flexíveis e as avaliações formativas, que possibilitam a inclusão de todos os estudantes, independentemente de seu desempenho técnico.
PESQUISAS ANTERIORES SOBRE INCLUSÃO E PRÁTICAS COMPETITIVAS
Estudos recentes têm evidenciado a eficácia de práticas competitivas bem conduzidas como instrumentos para promoção da inclusão nas aulas de Educação Física. Ferreira e Nascimento (2019), por exemplo, ao analisarem experiências de professores da rede pública, identificaram que a adaptação das regras e a reorganização dos times com base em critérios não exclusivamente técnicos resultaram em maior participação de alunos com deficiência.
Em sua pesquisa, os autores apontam que:
Quando a competição é mediada com intencionalidade pedagógica, ela deixa de ser um obstáculo à inclusão e passa a ser um meio de fortalecer o pertencimento dos estudantes ao grupo, promovendo aprendizagens que vão além do conteúdo motor (Ferreira; Nascimento, 2019, p. 112).
Silva e Farias (2017), ao estudarem o impacto de dinâmicas competitivas lúdicas em turmas com alunos com deficiência intelectual, observaram que esses alunos demonstraram maior motivação, engajamento e autoestima nas atividades. Para os autores, “a ludicidade da competição, quando não centrada na vitória, mas na vivência compartilhada, promove um ambiente propício para a inclusão e para o fortalecimento das relações interpessoais” (Silva; Farias, 2017, p. 95).
Essas evidências reforçam a importância de que a competição nas aulas de Educação Física seja compreendida não como um fim em si mesma, mas como um meio de provocar aprendizagens éticas, sociais e culturais. O professor, nesse contexto, é o agente central para garantir que a competição seja pautada em valores educativos e inclusivos.
METODOLOGIA
Esta pesquisa caracteriza-se como bibliográfica, de natureza qualitativa, com enfoque analítico e interpretativo. De acordo com Gil (2010), a pesquisa bibliográfica “é desenvolvida com base em material já elaborado, constituído principalmente de livros, artigos científicos, teses e dissertações”. Essa abordagem permite a análise crítica de produções acadêmicas que discutem a relação entre competição, inclusão e Educação Física no ambiente escolar.
A escolha pela metodologia bibliográfica justifica-se pela amplitude e profundidade do acervo teórico disponível sobre o tema, o que possibilita uma reflexão sólida e fundamentada sobre como a competição pode atuar como instrumento de inclusão nas aulas de Educação Física. Como salienta Lakatos e Marconi (2003), esse tipo de pesquisa “visa explicar um problema a partir de referências teóricas já publicadas, e exige do pesquisador a capacidade de selecionar, organizar e interpretar criticamente as informações disponíveis”.
O processo de levantamento bibliográfico foi realizado a partir de buscas em bases de dados científicas como SciELO, Google Acadêmico, CAPES Periódicos, além de livros e produções acadêmicas publicadas entre os anos de 1995 e 2024. Os descritores utilizados incluíram: “Educação Física Inclusiva”, “Competição Escolar”, “Inclusão na Escola”, “Jogos Cooperativos” e “Prática Pedagógica na Educação Física”.
Foram adotados como critérios de inclusão:
Como critérios de exclusão, descartaram-se:
A análise dos dados foi realizada por meio da técnica de análise de conteúdo temática, conforme proposto por Bardin (2016). Essa técnica permite identificar categorias relevantes no discurso dos autores, evidenciando as principais ideias, conceitos e abordagens que sustentam a proposta de utilização da competição como ferramenta inclusiva. A análise seguiu as seguintes etapas: pré-análise, codificação, categorização e interpretação crítica.
Portanto, esta metodologia permitiu compreender de forma aprofundada como a literatura especializada tem tratado a temática da competição nas aulas de Educação Física e seu potencial enquanto estratégia para a inclusão de todos os estudantes, respeitando as diversidades presentes no ambiente escolar.
ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
A literatura especializada analisada revela que a competição, quando conduzida com intencionalidade pedagógica, pode favorecer não apenas a motivação dos alunos, mas também a inclusão efetiva de estudantes com diferentes perfis e necessidades. O conceito tradicional de competição — centrado na vitória e no desempenho — é amplamente criticado, sendo substituído por uma concepção crítica e formativa.
RESSIGNIFICANDO A COMPETIÇÃO: Para Além do Rendimento
Em muitos contextos escolares, a competição ainda é praticada com ênfase no rendimento físico, o que gera exclusões. Contudo, a ressignificação da competição sob o olhar pedagógico transforma-a em uma ferramenta de engajamento coletivo. Darido e Rangel (2005) ressaltam que:
As aulas de Educação Física não podem reproduzir os modelos de rendimento dos clubes esportivos. O ambiente escolar exige um olhar formativo sobre a competição,no qual o mais importante não é ganhar ou perder, mas sim participar, respeitar as regras, desenvolver habilidades e valorizar o outro enquanto sujeito” (Darido; Rangel, 2005, p. 121).
Essa mudança de foco foi evidenciada no caso da Escola Estadual Joaquim Barreto de Souza (MG), em que um projeto interdisciplinar de jogos competitivos adaptados promoveu o aumento da participação de alunos com deficiência. Segundo o relatório da equipe pedagógica, em 2018, alunos que antes evitavam as aulas passaram a integrar ativamente as dinâmicas, graças à flexibilidade das regras, ao uso de pares colaboradores e à ênfase no esforço individual e coletivo (Barreto de Souza, 2019).
PARTICIPAÇÃO E PERTENCIMENTO: A INCLUSÃO PELO JOGO
A valorização do pertencimento como fator de inclusão é destacada por diversos pesquisadores. Em um estudo realizado por Silva e Farias (2017), foi observado que a estruturação de atividades competitivas com foco lúdico e cooperativo contribuiu para o engajamento de alunos com deficiência intelectual em uma escola pública do Ceará. Segundo os autores:
As atividades competitivas, quando organizadas de forma lúdica e mediadas com sensibilidade pedagógica, permitiram que os alunos com deficiência se sentissem acolhidos, desafiados e pertencentes ao grupo. O clima afetivo positivo e a ausência de cobrança por performance foram fundamentais para esse processo” (Silva; Farias, 2017, p. 96).
No mesmo estudo, os autores documentaram o caso de um aluno com deficiência intelectual leve, que passou de um estado de apatia nas aulas para uma postura ativa, motivada e verbalmente comunicativa após a introdução de desafios em forma de jogos competitivos adaptados. O aluno relatou: “Agora eu gosto da aula, porque eu posso ajudar meu time e todo mundo me chama para jogar” (Silva; Farias, 2017, p. 98).
A ATUAÇÃO DO PROFESSOR COMO MEDIADOR ÉTICO E INCLUSIVO
A mediação docente é decisiva para transformar a competição em experiência inclusiva. Kunz (2010) defende que:
O professor de Educação Física deve ter um papel político e pedagógico no espaço escolar, construindo possibilidades de vivência corporal que não sejam reprodutoras das desigualdades sociais. Sua intervenção é ética e transformadora, especialmente quando decide incluir todos os alunos na aula, não como obrigação, mas como princípio (Kunz, 2010, p. 53).
Essa mediação se concretiza por meio de ações como: adaptação das regras, escolha de modalidades inclusivas, valorização de múltiplas habilidades, reorganização de equipes, estímulo à empatia e construção de um ambiente seguro para o erro. Um exemplo disso foi o projeto “Jogos para Todos”, realizado em uma escola municipal de Florianópolis (SC), onde a competição foi adaptada em formato de circuitos por pontos simbólicos. Os professores observaram que alunos com deficiência visual e transtorno do espectro autista passaram a demonstrar entusiasmo, reduzindo episódios de evasão escolar e isolamento social (Silva et al., 2021).
LIMITES REAIS E POSSIBILIDADES FUTURAS
Apesar das experiências positivas, alguns estudos apontam limitações recorrentes. Muitos docentes ainda não se sentem preparados para conduzir práticas inclusivas em contextos competitivos, devido à formação tradicional voltada ao rendimento e à dificuldade em lidar com a diversidade.
No entanto, como lembra Freire (1996):
É no reconhecimento do inacabamento humano e na disposição permanente para aprender que se encontra o educador verdadeiramente comprometido. Ensinar é um exercício de humildade, escuta e reinvenção constante (Freire, 1996, p. 68).
Essa afirmação sustenta a ideia de que a transformação das práticas pedagógicas depende de processos contínuos de formação e reflexão crítica. A competição, portanto, não deve ser descartada como instrumento de exclusão, mas sim reinventada como meio de
promover inclusão, desde que esteja ancorada em valores éticos, práticas dialógicas e intencionalidade educativa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo permitiu compreender que a competição, quando planejada com intencionalidade pedagógica e sensibilidade à diversidade, pode tornar-se uma aliada poderosa no processo de inclusão nas aulas de Educação Física. A visão tradicional, que associa a competição ao desempenho e à exclusão, precisa ser superada em favor de abordagens que valorizem o engajamento coletivo, a diversidade de habilidades e o desenvolvimento integral dos estudantes.
A análise da literatura revelou experiências concretas em que práticas competitivas foram adaptadas com sucesso, permitindo a participação ativa de todos os alunos. Estratégias como adaptação de regras, organização de equipes heterogêneas e valorização do esforço individual mostraram-se eficazes na promoção do pertencimento e do envolvimento, mesmo entre aqueles que tradicionalmente seriam excluídos dessas dinâmicas.
O papel do professor é decisivo nesse processo. É ele quem transforma a competição em oportunidade de aprendizagem, garantindo que cada aluno se sinta valorizado, respeitado e parte do grupo. Isso exige uma postura ética, reflexiva e formativa, sustentada por práticas pedagógicas que priorizem o respeito, a empatia e o diálogo.
Apesar das evidências positivas, ainda há desafios a serem enfrentados, como a necessidade de formação continuada dos profissionais, revisão dos currículos e superação de culturas escolares que priorizam exclusivamente o rendimento. A competição inclusiva exige uma mudança de paradigma e um comprometimento genuíno com a educação de todos, sem exceção.
Conclui-se, portanto, que a competição pode ser um importante incentivo à inclusão, desde que integrada a uma prática pedagógica crítica e humanizadora. O futuro da Educação Física escolar passa pela capacidade de conciliar desafio, diversidade e pertencimento em suas propostas didáticas, construindo um ambiente em que todos os corpos, histórias e subjetividades tenham voz e vez.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 25. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
GIL, Antônio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2010. KUNZ, Elenor. Transformação didático-pedagógica do esporte. Ijuí: Unijuí, 2010.
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SILVA, Renata M. da et al. Jogos para todos: adaptação da competição como estratégia de inclusão. Caderno de Educação Física e Esporte, Florianópolis, v. 38, n. 2, p. 201–214, 2021.
SILVA, Tereza C.; FERREIRA, João L. Práticas inclusivas nas aulas de Educação Física: desafios e possibilidades. Revista da Associação Brasileira de Atividade Motora Adaptada, v. 9, n. 2, p. 22–35, 2014.
VILA, Arnaldo A. Educação Física Escolar – Conceitos, práticas e competências, 1ª edição, São Paulo – SP, Editora Supimpa, 2021.
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