Autor
Resumo
INTRODUÇÃO
A cárie dentária é reconhecida como uma das condições crônicas mais prevalentes na população mundial, afetando indivíduos de todas as idades e contextos socioeconômicos. Para mensurar a experiência acumulada da doença ao longo da vida, foi desenvolvido o índice CPOD (sigla para Cariado, Perdido e Obturado por Decaimento), também conhecido internacionalmente como DMFT (Decayed, Missing, and Filled Teeth). Desde sua padronização pela Organização Mundial da Saúde (OMS), o CPOD tem sido amplamente utilizado como indicador epidemiológico essencial para monitoramento da saúde bucal em estudos populacionais e para o planejamento de ações em saúde coletiva.
Historicamente, o índice CPOD representou um marco na transição da odontologia curativa para uma abordagem mais preventiva e baseada em evidências. Sua aplicação permitiu não apenas quantificar a carga de doença bucal nas populações, mas também identificar padrões de desigualdade, avaliar o impacto das políticas públicas de saúde bucal e subsidiar decisões estratégicas na formulação de programas como o Brasil Sorridente e a Política Nacional de Saúde Bucal.
No cenário brasileiro, a realização de levantamentos nacionais como o SB Brasil (em 2003, 2010 e, mais recentemente, em 2020) consolidou o CPOD como instrumento fundamental para a vigilância em saúde bucal, revelando quedas significativas nos níveis de cárie em crianças de 12 anos, mas também destacando desigualdades persistentes entre regiões, grupos étnicos, faixas de renda e níveis de escolaridade. Esses dados apontam a urgência de revisitar as estratégias adotadas, com base em uma leitura mais crítica dos determinantes sociais que influenciam a saúde bucal e o acesso aos serviços odontológicos.
No plano internacional, observam-se avanços notáveis em países desenvolvidos, onde o CPOD apresenta valores médios inferiores a 1,0, resultado de décadas de investimento em fluoretação da água, educação em saúde, ampliação do acesso universal e tecnologias preventivas. Em contraste, diversos países em desenvolvimento ainda enfrentam altos níveis de cárie não tratada, revelando limitações estruturais nos sistemas de saúde pública e barreiras de acesso que perpetuam a iniquidade em saúde.
Diante desse contexto, a presente revisão de literatura tem como objetivo analisar criticamente a evolução do índice CPOD no Brasil e no mundo, considerando as transformações epidemiológicas, as políticas públicas implementadas e os desafios contemporâneos para a superação das desigualdades em saúde bucal. A partir de uma abordagem baseada em evidências atuais e em documentos oficiais de referência, busca-se oferecer uma leitura abrangente e atualizada do panorama da cárie dentária como problema de saúde pública, contribuindo para o aprimoramento das estratégias locais, como o novo levantamento CPOD que será realizado no município de Manhuaçu – MG.
METODOLOGIA DA REVISÃO
Trata-se de uma revisão narrativa de literatura com abordagem crítica e integrativa, voltada para a compreensão aprofundada da evolução do índice CPOD (Cariado, Perdido e Obturado) no Brasil e em diferentes contextos internacionais. O objetivo principal foi mapear e analisar os avanços e desafios na prevenção da cárie dentária a partir das evidências mais recentes, com ênfase nos determinantes sociais da saúde, políticas públicas e estratégias de controle da doença.
ESTRATÉGIA DE BUSCA BIBLIOGRÁFICA
A busca por publicações foi realizada entre janeiro de 2023 e março de 2025, utilizando as bases de dados científicas:
Foram utilizados os seguintes descritores controlados e palavras-chave, combinados com operadores booleanos:
“Índice CPOD” OU “índice DMFT” OU “cárie dentária”
“indicadores de saúde bucal” OU “epidemiologia bucal”
“Brasil” OU “global” OU “saúde mundial” “política de saúde pública” OU “equidade em saúde”
Além disso, foram incluídos documentos técnicos e institucionais publicados por organizações internacionais e nacionais, como a Organização Mundial da Saúde (OMS/WHO) e o Ministério da Saúde do Brasil, especialmente os relatórios das edições do levantamento epidemiológico SB Brasil (2003, 2010 e 2020).
CRITÉRIOS DE INCLUSÃO E EXCLUSÃO
Foram incluídos:
Foram excluídos:
ANÁLISE E SÍNTESE DOS DADOS
Os estudos selecionados foram lidos na íntegra e submetidos a análise temática. Os dados extraídos foram organizados em quadros comparativos e categorizados de acordo com as seguintes dimensões:
EVOLUÇÃO HISTÓRICA E PANORAMA MUNDIAL DO ÍNDICE CPOD
O índice CPOD (Dentes Cariados, Perdidos e Obturados) foi proposto pela Organização Mundial da Saúde (OMS) na década de 1930 como indicador padronizado para avaliar a experiência acumulada de cárie dentária em populações. Ao longo do tempo, consolidou-se como uma das principais ferramentas de avaliação em saúde bucal coletiva, especialmente na faixa etária de 12 anos, considerada referência internacional por representar o término da dentição mista e o início da permanência dentária (Petersen et al., 2005).
A análise histórica do CPOD revela uma transição epidemiológica significativa nas últimas décadas, sobretudo em países de alta renda. A queda sustentada do CPOD nesses contextos reflete uma série de fatores interdependentes: políticas públicas de longo prazo, fluoretação das águas, ampla distribuição de dentifrícios fluoretados, escolarização em massa, acesso universal a serviços odontológicos e forte atuação da odontologia preventiva.
TENDÊNCIAS GLOBAIS E MODELOS DE SUCESSO
Em países europeus, como Suécia, Dinamarca e Finlândia, o CPOD médio em escolares de 12 anos já se mantém consistentemente abaixo de 1,0, o que caracteriza uma população com mínima experiência de cárie dentária. Esses países adotaram uma abordagem centrada na prevenção desde o início da década de 1970, com programas escolares estruturados e políticas públicas contínuas de promoção da saúde bucal (Petersen & Kwan, 2011).
Nos Estados Unidos, a fluoretação das águas desde a década de 1940 foi determinante para a redução do CPOD. O país mantém média de CPOD em torno de 1,2 aos 12 anos, com grandes variações entre estados e grupos étnico-raciais (CDC, 2022). A universalização do uso de dentifrícios fluoretados e a cultura do check-up odontológico semestral também contribuíram para esse desempenho.
Em países emergentes da Ásia, como a Índia, a redução do CPOD ainda ocorre de forma lenta. O CPOD médio em escolares de 12 anos ainda ultrapassa 2,5, em parte devido à ausência de políticas nacionais consistentes, dificuldades de acesso aos serviços de saúde e predominância de abordagens curativas (Kumar et al., 2020). Já em países da África Subsariana, como a África do Sul, os índices ultrapassam 3,0, com concentração das lesões de cárie em populações rurais e sem acesso a água fluoretada (Naidoo & Chikte, 2019).
A FLUORETAÇÃO COMO POLÍTICA GLOBAL
A fluoretação da água de abastecimento é reconhecida pela OMS como uma das medidas mais eficazes, seguras e custo-benefício para a prevenção da cárie dentária em comunidades. Estudos mostram que a fluoretação pode reduzir em até 35% a 50% a incidência de cárie em escolares, especialmente em regiões com menor acesso a cuidados odontológicos (WHO, 2016).
Atualmente, cerca de 372 milhões de pessoas no mundo vivem em áreas com abastecimento de água fluoretada, o que representa cerca de 5% da população mundial (Frazão et al., 2021). Enquanto países como Austrália, Nova Zelândia, Irlanda, Canadá e Brasil possuem políticas amplamente difundidas, outros países, como Alemanha, França e Suíça, optaram por estratégias alternativas, como o sal fluoretado.
DIRETRIZES E METAS GLOBAIS DA OMS
A OMS propôs, em 2003, a meta de alcançar um CPOD ≤ 3 aos 12 anos até 2010, objetivo que foi atingido por diversos países desenvolvidos. Com a atualização das diretrizes globais em 2021, a meta passou a ser ainda mais ambiciosa: reduzir em pelo menos 30% a prevalência de cárie não tratada até 2030, com especial atenção às populações mais vulneráveis e aos determinantes sociais da saúde bucal (WHO, 2022).
A OMS também recomenda a incorporação da saúde bucal às agendas nacionais de saúde universal, incluindo financiamento público, vigilância epidemiológica contínua e programas escolares de promoção da saúde oral. A ênfase atual está na equidade e na intersetorialidade, reconhecendo que a redução do CPOD é inseparável de fatores sociais, culturais e econômicos.
SITUAÇÃO DO CPOD NO BRASIL
A trajetória da saúde bucal no Brasil nas últimas décadas revela avanços importantes, embora ainda marcadamente desiguais. O índice CPOD (Cariado, Perdido e Obturado), adotado como principal indicador de cárie dentária pela Organização Mundial da Saúde (OMS), tem sido amplamente utilizado nos levantamentos epidemiológicos realizados pelo Ministério da Saúde, especialmente no contexto do projeto SB Brasil. Esses estudos permitiram não apenas a mensuração da experiência de cárie em diferentes faixas etárias, mas também a observação de padrões regionais, etários e socioeconômicos, fundamentais para a formulação e avaliação de políticas públicas de saúde bucal.
EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO CPOD AOS 12 ANOS
Desde a década de 1980, observa-se uma tendência de declínio progressivo do CPOD entre escolares de 12 anos no Brasil. Em 1986, o CPOD médio nessa faixa etária era de 6,7. Em 2003, esse valor caiu para 2,8; em 2010, para 2,1; e os dados mais recentes de 2020 indicam um valor estimado de 1,96 (Brasil, 2021; Frazão & Narvai, 2022). Essa redução é resultado direto de políticas públicas articuladas, como a introdução de fluoretos nos dentifrícios, a expansão da fluoretação da água de abastecimento e a ampliação do acesso aos serviços odontológicos por meio da Atenção Básica, especialmente com a implementação da Estratégia de Saúde da Família (ESF).
Contudo, é necessário relativizar esses avanços. Embora a média nacional do CPOD esteja próxima à meta preconizada pela OMS (≤ 3 aos 12 anos), ainda existe grande variação entre estados e municípios. Municípios com maior cobertura de serviços de saúde bucal e abastecimento com água fluoretada apresentam melhores indicadores. Em contrapartida, regiões com infraestrutura precária, ausência de políticas locais consolidadas e baixo índice de desenvolvimento humano mantêm CPODs superiores à média nacional, refletindo desigualdades estruturais no acesso à saúde.
DISPARIDADES REGIONAIS E SOCIAIS
O levantamento SB Brasil 2010 revelou discrepâncias notáveis entre regiões brasileiras. Na região Sudeste, por exemplo, o CPOD médio foi de 1,89 aos 12 anos, enquanto no Norte foi de 3,16 — valor significativamente superior à média nacional da época (Brasil, 2011). Essas diferenças não são apenas geográficas, mas refletem profundas desigualdades sociais, históricas e estruturais.
Estudos apontam que as populações negras, indígenas e ribeirinhas apresentam índices de CPOD mais elevados em todas as faixas etárias. Esses grupos estão frequentemente associados a piores condições socioeconômicas, menor escolaridade dos pais, dificuldade de acesso a serviços de saúde e baixa percepção da importância da saúde bucal (Moysés & Moysés, 2021). Além disso, a ausência de políticas de promoção da saúde bucal em territórios vulneráveis contribui para a perpetuação dessas iniquidades.
SAÚDE BUCAL DE ADULTOS E IDOSOS: O PESO ACUMULADO DA EXCLUSÃO
Embora grande parte dos estudos se concentre na faixa etária de 12 anos, é entre os adultos (35-44 anos) e idosos (65-74 anos) que se observa a expressão mais crua das desigualdades em saúde bucal acumuladas ao longo da vida. Segundo o SB Brasil 2010, 92,7% dos adultos apresentavam pelo menos um dente comprometido por cárie, e a média de dentes perdidos nessa faixa etária era de 7,4. Já entre os idosos, o cenário é ainda mais alarmante: 54,7% eram totalmente edêntulos e a média de dentes perdidos era de 25,8 (Brasil, 2011).
Além disso, os dados revelam que mais de 70% da população idosa e quase metade dos adultos brasileiros necessitam de algum tipo de prótese dentária — seja total, parcial removível ou fixa. A carência de serviços de reabilitação oral no SUS, sobretudo nas regiões Norte e Nordeste, contribui para a perpetuação do sofrimento bucal crônico e de condições funcionais e estéticas comprometedoras, com impacto direto na alimentação, autoestima e inserção social dos indivíduos.
POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE BUCAL NO BRASIL: AVANÇOS E DESAFIOS
O lançamento do programa Brasil Sorridente, em 2004, representou um marco na política pública de saúde bucal no Brasil. A incorporação de equipes de saúde bucal à Estratégia de Saúde da Família e a criação dos Centros de Especialidades Odontológicas (CEOs) promoveram a descentralização da atenção especializada e o fortalecimento das ações de promoção, prevenção e tratamento (Narvai, 2022).
A expansão do programa permitiu um aumento expressivo na cobertura populacional da atenção odontológica básica e especializada. Em 2004, cerca de 4 mil equipes de saúde bucal estavam credenciadas no país. Em 2022, esse número ultrapassou 30 mil, com cobertura estimada de mais de 100 milhões de brasileiros (Brasil, 2022). No entanto, essa ampliação quantitativa ainda enfrenta entraves qualitativos, como desigualdade na distribuição dos serviços, infraestrutura inadequada em algumas regiões e ausência de integração efetiva entre os níveis de atenção.
A fluoretação da água de abastecimento, prevista pela Lei Federal nº 6.050/1974, também contribuiu decisivamente para a redução da cárie dentária. Estudos indicam que municípios com abastecimento fluoretado apresentam prevalência de cárie até 40% menor do que aqueles sem essa medida (Frazão et al., 2020). Contudo, em 2022, apenas cerca de 60% dos municípios brasileiros tinham sistemas de fluoretação ativos, com maior cobertura nas regiões Sul e Sudeste.
A IMPORTÂNCIA DOS ESTUDOS LOCAIS E VIGILÂNCIA CONTÍNUA
O monitoramento constante dos indicadores epidemiológicos é fundamental para o planejamento e a avaliação das políticas públicas. Iniciativas locais, como os inquéritos de saúde bucal realizados em municípios de médio porte, são essenciais para identificar prioridades e adaptar estratégias às realidades territoriais. O novo levantamento do CPOD em andamento no município de Manhuaçu/MG, por exemplo, tem o potencial de revelar nuances específicas do território e orientar ações com base em evidências locais — princípio central da vigilância em saúde.
DETERMINANTES SOCIAIS E DESIGUALDADES EM SAÚDE BUCAL
A cárie dentária, apesar de ser uma condição amplamente prevenível, persiste como uma das doenças crônicas mais prevalentes no mundo — e no Brasil —, sobretudo entre os grupos socialmente vulneráveis. A literatura científica contemporânea já não compreende a distribuição da cárie como fruto exclusivo de fatores biológicos ou comportamentais individuais, mas como um fenômeno profundamente influenciado por determinantes sociais da saúde (Moysés & Moysés, 2013; Watt et al., 2019).
No campo da saúde bucal coletiva, é consenso que variáveis como escolaridade, renda, etnia, território, acesso aos serviços de saúde, políticas públicas e capital social influenciam diretamente o risco de adoecer, o acesso à prevenção e ao tratamento, e, por consequência, os indicadores como o índice CPOD.
ETNIA, CLASSE SOCIAL E TERRITÓRIO COMO MARCADORES DE DESIGUALDADE
Dados do levantamento SB Brasil 2010 mostram que crianças negras e pardas apresentavam valores médios de CPOD mais altos que crianças brancas na faixa dos 12 anos, mesmo após ajuste por escolaridade materna e renda domiciliar per capita (Brasil, 2011). Essa desigualdade é ainda mais acentuada entre populações indígenas, ribeirinhas, quilombolas e em comunidades tradicionais.
Além disso, estudos conduzidos por Antunes e Narvai (2010) e Frazão et al. (2019) indicam que o território é um determinante estrutural importante: municípios com menor índice de desenvolvimento humano (IDH), ausência de fluoretação da água e baixa cobertura de equipes de saúde bucal apresentam médias de CPOD sistematicamente superiores.
Populações que residem em áreas rurais e periferias urbanas, por exemplo, estão mais expostas a barreiras geográficas e institucionais que dificultam o acesso contínuo a ações de promoção e prevenção em saúde bucal. Essas regiões frequentemente carecem de equipes de saúde bucal na atenção básica, e apresentam um padrão de atenção centrado no atendimento por demanda espontânea, sem longitudinalidade nem ações educativas permanentes.
ESCOLARIDADE E RENDA: DETERMINANTES CENTRAIS NA EXPERIÊNCIA DE CÁRIE
A escolaridade, especialmente materna, é um forte preditor do risco de cárie em crianças e adolescentes. Pais com maior nível de escolaridade tendem a incentivar práticas de higiene bucal mais consistentes, utilizar dentifrícios fluoretados de forma adequada, e buscar com mais frequência os serviços odontológicos, mesmo preventivos (Peres et al., 2010; Bonecker et al., 2020).
No Brasil, o nível de renda domiciliar também é fortemente associado ao CPOD. Crianças de famílias com menor renda apresentam maior número de dentes cariados não tratados, menor número de dentes restaurados e maior proporção de dentes perdidos. Essa relação permanece mesmo quando se controla o acesso ao SUS, evidenciando que o modelo de atenção ainda é insuficiente para romper as desigualdades sociais acumuladas.
IMPACTOS PSICOSSOCIAIS DAS DESIGUALDADES EM SAÚDE BUCAL
A cárie dentária, especialmente quando não tratada, possui consequências que extrapolam os limites da saúde física. Estudos qualitativos e quantitativos mostram que crianças com múltiplos dentes cariados ou perdidos apresentam queda no rendimento escolar, retraimento social, dor persistente e diminuição da autoestima (Abegg et al., 2015). Em adultos, a perda dentária é frequentemente associada a piora na empregabilidade, impacto negativo na saúde mental e limitações funcionais alimentares, ampliando o ciclo de exclusão.
A abordagem das desigualdades em saúde bucal, portanto, não deve se restringir ao acesso ao cuidado clínico, mas considerar a inserção do sujeito em um contexto mais amplo de vulnerabilidade estrutural.
A IMPORTÂNCIA DA EQUIDADE COMO PRINCÍPIO NORTEADOR DAS POLÍTICAS PÚBLICAS
Os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) — universalidade, integralidade e equidade — são fundamentais para guiar as políticas de saúde bucal. No entanto, a equidade exige que ações sejam organizadas com intensidade proporcional às necessidades sociais e epidemiológicas de cada território (Narvai, 2012). Não basta oferecer o mesmo tipo de serviço para todos; é necessário alocar mais recursos, ações e investimentos nos territórios e populações mais vulnerabilizadas.
Programas como Saúde na Escola, a criação de consultórios itinerantes em áreas rurais, o estímulo à produção de material educativo em línguas indígenas e afro-brasileiras, e a qualificação permanente das equipes de saúde bucal são estratégias que, se articuladas entre os níveis de gestão, podem minimizar desigualdades e fortalecer uma política bucal mais justa.
DESAFIOS ATUAIS E PERSPECTIVAS FUTURAS NO CONTROLE DA CÁRIE DENTÁRIA
Apesar da expressiva redução do índice CPOD nas últimas décadas, a cárie dentária permanece como um problema de saúde pública relevante no Brasil e em diversos países de baixa e média renda. O controle efetivo da cárie exige a superação de barreiras históricas, tecnológicas, sociais e políticas que, em muitos casos, extrapolam o setor saúde. Nesta seção, discute-se criticamente os principais desafios contemporâneos e as perspectivas futuras para o enfrentamento da cárie dentária, considerando inovações científicas, tecnológicas e organizacionais no âmbito do SUS.
LIMITAÇÕES DO CPOD E ADOÇÃO DE NOVOS INDICADORES
O índice CPOD, embora amplamente utilizado, tem sido criticado por sua incapacidade de captar lesões iniciais de cárie, subestimando a real prevalência da doença, especialmente em populações com acesso moderado à assistência odontológica. Além disso, ele não diferencia severidade nem considera aspectos funcionais e subjetivos da saúde bucal.
Diante disso, novas ferramentas têm sido adotadas em estudos populacionais e clínicos, como o ICDAS (International Caries Detection and Assessment System), que permite a detecção precoce de lesões não cavitadas e monitoramento mais sensível do risco de progressão. Outra proposta relevante é o índice SiC (Significant Caries Index), que busca evidenciar o impacto da cárie nos indivíduos com maior carga de doença dentro de uma população, trazendo à tona a desigualdade intra-grupo, mesmo em populações com CPOD médio baixo (Bratthall, 2000).
A adoção desses indicadores em pesquisas e serviços de saúde bucal no Brasil representa um avanço conceitual e metodológico, mas ainda enfrenta obstáculos relacionados à formação profissional, padronização e integração com os sistemas de informação do SUS.
INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS: TELESSAÚDE E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
A incorporação de tecnologias digitais na atenção à saúde bucal é um dos caminhos mais promissores para ampliar o acesso, melhorar o diagnóstico e garantir continuidade do cuidado, especialmente em regiões com escassez de profissionais ou infraestrutura precária. O programa Telessaúde Brasil Redes, vinculado ao Ministério da Saúde, tem permitido a realização de teleconsultorias, telediagnósticos e tele-educação, com impacto positivo na qualificação das equipes e no apoio à tomada de decisão clínica em odontologia (Pereira et al., 2022).
Mais recentemente, pesquisas vêm explorando o uso de inteligência artificial (IA) para triagem automatizada de lesões de cárie em imagens clínicas e radiográficas. Softwares baseados em machine learning têm mostrado alta sensibilidade para identificação de lesões iniciais, o que pode ampliar a detecção precoce e o monitoramento em larga escala, inclusive em populações escolares.
Contudo, a incorporação dessas tecnologias exige uma política nacional de infraestrutura digital, capacitação das equipes, regulação ética e garantia de sigilo e proteção de dados dos pacientes, o que ainda é um desafio na realidade brasileira.
IMPACTOS DA PANDEMIA DE COVID-19 E A NECESSIDADE DE RESILIÊNCIA NO SUS
A pandemia de COVID-19 teve repercussões profundas nos serviços de saúde bucal, com suspensão de atendimentos eletivos, interrupção de ações preventivas em escolas e sobrecarga das equipes de saúde bucal da Atenção Básica. Estima-se que houve um aumento da demanda reprimida por atendimentos restauradores e cirúrgicos, o que pode comprometer os indicadores de saúde bucal nos próximos anos (Neves et al., 2021).
Esse contexto reforça a necessidade de construção de modelos resilientes, capazes de manter ações essenciais em situações de emergência sanitária. A institucionalização de protocolos de biossegurança, priorização de atendimentos por risco e fortalecimento da educação em saúde digital são elementos-chave para a continuidade do cuidado em contextos adversos.
A INTERSETORIALIDADE COMO EIXO ESTRUTURANTE DA PROMOÇÃO DA SAÚDE BUCAL
A superação dos fatores estruturais que mantêm a cárie como uma condição prevalente e inequitativa passa pela adoção de estratégias intersetoriais e integradas. A literatura aponta que intervenções isoladas no âmbito da saúde são insuficientes frente à complexidade dos determinantes da saúde bucal, sendo fundamental o diálogo com políticas de educação, assistência social, segurança alimentar, saneamento básico e desenvolvimento territorial (Narvai & Frazão, 2020).
Ações como o Programa Saúde na Escola (PSE), a distribuição de kits de higiene bucal com acompanhamento educativo, a fortificação de alimentos com flúor, e a melhoria do acesso à água potável e saneamento são exemplos de medidas que, quando articuladas de forma intersetorial, podem gerar impactos duradouros sobre a prevalência de cárie dentária.
PERSPECTIVAS PARA MUNICÍPIOS DE PEQUENO E MÉDIO PORTE
Municípios de pequeno e médio porte — como o caso de Manhuaçu/MG — enfrentam desafios específicos, como escassez de especialistas, fragilidade na vigilância em saúde bucal e dificuldades logísticas para acesso a centros de referência. Para esses contextos, recomenda-se o fortalecimento da atenção básica com equipes de saúde bucal bem formadas, programas escolares contínuos e capacitação permanente, além de parcerias com universidades e centros de pesquisa para construção de estratégias baseadas em evidências.
O levantamento epidemiológico que está sendo realizado em Manhuaçu é exemplo de boa prática local e pode contribuir para a construção de um modelo regional de vigilância e planejamento em saúde bucal.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A trajetória de queda do índice CPOD no Brasil ao longo das últimas décadas constitui um marco importante na história da saúde bucal coletiva do país, evidenciando o impacto positivo de políticas públicas bem estruturadas e integradas ao Sistema Único de Saúde (SUS), como o programa Brasil Sorridente, a fluoretação das águas, a expansão da Atenção Básica com equipes de saúde bucal e as ações intersetoriais em ambientes escolares. Os dados nacionais mostram que o país conseguiu, de forma geral, atingir a meta preconizada pela Organização Mundial da Saúde de CPOD ≤ 3 aos 12 anos — um feito que, por si só, reflete o amadurecimento do modelo brasileiro de atenção à saúde bucal.
Contudo, esse avanço não é homogêneo. O Brasil continua apresentando profundas desigualdades regionais, sociais, étnicas e territoriais que condicionam o risco de cárie e o acesso aos serviços de saúde. A persistência de CPODs elevados em populações ribeirinhas, indígenas, negras, em áreas rurais e periferias urbanas reforça a tese de que o sucesso das políticas universais de saúde deve ser complementado por ações focalizadas e equitativas, voltadas às populações em situação de maior vulnerabilidade.
A literatura revisada é categórica ao afirmar que ações preventivas isoladas não são suficientes para manter a tendência de queda do CPOD se não estiverem inseridas em um contexto mais amplo de promoção da equidade social. Isso significa ampliar o acesso à água potável e à fluoretação, reduzir desigualdades educacionais, fortalecer a atenção primária com resolutividade e continuidade do cuidado, e investir em tecnologias e sistemas de informação que permitam identificar e acompanhar grupos de risco.
Nesse sentido, o papel da vigilância em saúde bucal torna-se cada vez mais relevante. Os dados obtidos por meio de inquéritos epidemiológicos, como os realizados nos ciclos do SB Brasil, devem ser interpretados não apenas como descrições do estado de saúde da população, mas como ferramentas para o planejamento local, regional e nacional. Iniciativas locais, como o novo levantamento do CPOD em andamento no município de Manhuaçu (MG), representam experiências valiosas de produção de dados primários contextualizados, que fortalecem a gestão em saúde, qualificam a tomada de decisão e orientam estratégias mais adequadas às realidades específicas de cada território.
Por fim, a construção de um futuro com menor prevalência de cárie dentária no Brasil dependerá da capacidade do Estado e da sociedade civil em sustentar políticas públicas baseadas em evidências, com foco na equidade e na integralidade da atenção. Trata-se não apenas de reduzir índices, mas de promover justiça social por meio do cuidado com a saúde bucal — um direito humano fundamental e um marcador sensível das desigualdades em saúde.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANTUNES J. L. F, Narvai P. C. Políticas de saúde bucal no Brasil e o SUS. Rev Saúde Pública.
BRASIL. Ministério da Saúde. SB Brasil 2010: Pesquisa Nacional de Saúde Bucal. Brasília: Ministério da Saúde, 2011.
BRASIL. Ministério da Saúde. SB Brasil 2020: Resultados Preliminares. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Brasília: 2021.
BRASIL. Ministério da Saúde. SB Brasil 2020: resultados preliminares.
BRATTHALL D. Introducing the Significant Caries Index together with a proposal for a new global oral health goal for 12-year-olds. Int Dent J. 2000;50(6):378–384.
FRAZÃO P, Castellanos R. A. Fluoretação da água no Brasil: avanços e desafios. Rev Panam Salud Publica. 2020;44:e55.
FRAZÃO P, Narvai P. C. Políticas públicas de saúde bucal no Brasil: do Brasil Sorridente à vigilância do risco. Cien Saude Colet. 2022;27(9):3473-3480.
ISMAIL A. I, Sohn W, Tellez M, et al. The International Caries Detection and Assessment System (ICDAS): An integrated system for measuring dental caries. Community Dent Oral Epidemiol. 2007;35(3):170–178.
LEITE F, Lopes F. F, Mello A. L. S. F. Inteligência artificial na triagem de lesões de cárie em atenção primária: potencialidades e desafios. Rev Bras Odontol Saúde Coletiva. 2022;2(1):45-54.
MONTEIRO C. A, Cannon G, Moubarac J. C, et al. Ultra-processed products are becoming dominant in the global food system. Obes Rev. 2022;23(S1):e13309.
MOYSES S. J. Equidade e saúde bucal: desafios e propostas.
MOYSÉS S. J, Moysés S. T. Determinantes sociais da saúde bucal: equidade e políticas públicas. In: Antunes JLF, PERES MA. Epidemiologia da saúde bucal. 2. ed. São Paulo: Santos, 2013.
NARVAI P. C, Frazão P. O Brasil pós-pandemia e a saúde bucal: retrocessos, resistências e reinvenções. Cien Saude Colet. 2021;26(9):3999-4006.
NARVAI P. C, Frazão P. Saúde bucal no SUS: políticas públicas, atenção à saúde e epidemiologia. 2. ed. São Paulo: Hucitec; 2020.
NARVAI P. C. Saúde bucal coletiva: repensando o Brasil Sorridente. Rev ABENO. 2022;22(1):2-8.
NEVES B. G, Souza M. C, Souza J. G. S, et al. Impact of COVID-19 pandemic on oral health services in Brazil. Rev Saude Publica. 2021;55:88.
PEREIRA JÚNIOR G. A, Scherer C. I, Tavares M. Telessaúde e saúde bucal no Brasil: avanços e desafios. Cien Saude Colet. 2022;27(5):1881–1892.
PERES M. A et al. Oral diseases: a global public health challenge. Lancet. 2019.
PETERSEN P. E. The World Oral Health Report 2022. Geneva: WHO.
WATT R. G, Daly B, Allison P, et al. Ending the neglect of global oral health: time for radical action. Lancet. 2019;394(10194):261–272.
Área do Conhecimento
Submeta seu artigo e amplie o impacto de suas pesquisas com visibilidade internacional e reconhecimento acadêmico garantidos.