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Resumo
INTRODUÇÃO
A Constituição Federal de 1988 e a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) definiram a assistência social no Brasil como um direito social, não contributivo e universal, representando um avanço significativo na perspectiva das políticas sociais e na concepção de cidadania. No entanto, apesar dessas determinações legais, observa-se na prática cotidiana da assistência social a persistência de abordagens focalizadas, fragmentadas e marcadas por fortes resquícios filantrópicos e assistencialistas. Tais práticas restringem a abrangência universal idealizada pelas normativas e limitam a eficácia do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), particularmente no atendimento das populações historicamente excluídas do mercado formal de trabalho.
Neste contexto, o problema central deste estudo reside na contradição existente entre o marco normativo avançado da assistência social no país e sua concretização prática, que ainda é permeada por tensões entre abordagens focalizadas e uma perspectiva universalista. Essa situação gera obstáculos significativos para que o SUAS cumpra plenamente sua missão institucional de prover proteção social digna, ampla e equitativa a todos que dela necessitam, sobretudo aos segmentos sociais mais vulneráveis e marginalizados.
Diante desse cenário, este artigo tem como objetivo geral analisar criticamente como a política de Assistência Social foi estruturada e se desenvolveu historicamente no Brasil, investigando especificamente as tensões entre focalização e universalização. Busca-se compreender, ainda, os principais desafios históricos e contemporâneos que impedem ou dificultam a efetiva consolidação do SUAS enquanto um direito social não contributivo e verdadeiramente universal.
Para atingir esse objetivo, o estudo se fundamenta metodologicamente em uma revisão bibliográfica, por meio da análise crítica de textos acadêmicos, documentos institucionais, legislação pertinente e obras de referência sobre o tema. A escolha por essa metodologia permite uma análise qualitativa aprofundada, possibilitando identificar as contradições e desafios conceituais e práticos que acompanham a implementação e consolidação do SUAS desde sua criação até a atualidade.
Nesse percurso analítico, discutem-se aspectos fundamentais como a evolução histórica das políticas de proteção social no país, o impacto das ambiguidades constitucionais no reconhecimento do direito universal à assistência social e as resistências institucionais e sociais à superação de práticas assistencialistas e clientelistas. Com isso, pretende-se não apenas diagnosticar criticamente as limitações e obstáculos enfrentados pelo SUAS, mas também apontar caminhos e alternativas que possam contribuir para fortalecer a política de assistência social em sua dimensão pública, inclusiva e emancipatória.
Em suma, este artigo busca contribuir para o debate acadêmico e profissional, evidenciando a necessidade urgente de superação das práticas restritivas e focalizadas, de modo a efetivar plenamente a universalização do direito à proteção social no Brasil, consolidando o SUAS como política pública efetivamente garantidora dos direitos sociais e da cidadania plena.
METODOLOGIA
Este artigo constitui-se como uma pesquisa qualitativa que adota o método da revisão bibliográfica, possibilitando uma análise aprofundada e crítica dos conceitos, problemas e fenômenos sociais relacionados à estruturação e ao desenvolvimento da Política de Assistência Social no Brasil. Essa abordagem se mostra especialmente adequada para investigar as tensões entre focalização e universalização, bem como para compreender os desafios históricos e contemporâneos enfrentados pelo Sistema Único de Assistência Social (SUAS).
As fontes selecionadas abrangem:
A seleção das fontes foi realizada com base em critérios temáticos e qualitativos, priorizando textos e autores reconhecidos na área que oferecem análises críticas sobre as contradições, os limites e os avanços do SUAS enquanto política pública universal.
Para garantir a sistematicidade e a transparência do processo, foram adotadas as seguintes estratégias:
O processo analítico compreendeu:
A revisão bibliográfica é guiada por um referencial teórico que integra estudos sobre políticas públicas e teorias dos direitos sociais. Esse referencial sustenta a análise dos mecanismos de focalização e universalização presentes no SUAS e contribui para uma reflexão crítica sobre os desafios para a consolidação de um sistema de proteção social universal. Além disso, reconhece-se a limitação inerente à revisão bibliográfica – como a dependência da disponibilidade e qualidade dos estudos – e adota-se a triangulação entre diferentes tipos de fontes para mitigar possíveis vieses.
A metodologia segue as seguintes etapas:
DESENVOLVIMENTO
Historicamente, a proteção social no Brasil desenvolveu-se sob a lógica da chamada “cidadania regulada”, conceito que vincula diretamente o acesso aos direitos sociais à inserção formal no mercado de trabalho. Essa perspectiva deixou à margem importantes parcelas da população brasileira, particularmente trabalhadores informais e desempregados, os quais não tinham seus direitos garantidos integralmente pelo Estado. Para esses segmentos sociais, a proteção assumiu tradicionalmente um caráter assistencialista, baseado predominantemente em ações filantrópicas e práticas de caridade, em detrimento da universalização e do reconhecimento efetivo dos direitos sociais como garantias legais (Raichelis, Couto e Yazbek, 2012).
Nesse contexto, a Política Nacional de Assistência Social define claramente seu público-alvo, evidenciando o compromisso estatal com a melhoria das condições de vida das populações em situação de maior vulnerabilidade. Segundo Cruz e Guareschi (2016, p. 65), a função primordial da Assistência Social reside na efetivação dos direitos sociais e no atendimento às necessidades básicas daqueles que historicamente estiveram excluídos do acesso à proteção social. Entretanto, para que essa proteção alcance de fato a dimensão universal proposta, torna-se necessário ultrapassar as limitações impostas por modelos tradicionais restritivos e avançar rumo a estratégias que contemplem de forma mais ampla e efetiva as múltiplas vulnerabilidades sociais presentes na sociedade brasileira (Ferla, 2021).
ASPECTOS TEÓRICOS DA PROTEÇÃO SOCIAL NO BRASIL
No âmbito da assistência social, a defesa da segurança de renda mediante benefícios socioassistenciais compreende como legítima a proteção independentemente da inserção ou não do sujeito no mercado de trabalho. Dessa forma, “a proteção social de renda enquanto direito social se dirige, inclusive, para a proteção dos cidadãos dos abusos do trabalho assalariado” (Broto, 2016, p. 167). Essa perspectiva acentua a função emancipatória dos benefícios, evidenciando a necessidade de reconhecer os direitos universais à proteção como parte integrante de uma política social efetiva e justa, sobretudo em um contexto marcado por desigualdades estruturais e pela precarização do trabalho.
Segundo Raichelis, Couto e Yazbek (2012), tal modelo não leva em consideração a complexidade das situações de vulnerabilidade social, limitando-se a respostas pontuais e emergenciais, insuficientes diante da diversidade de exclusões e desigualdades existentes na sociedade brasileira. Esses autores defendem que a proteção social efetiva deve ultrapassar a perspectiva meramente laboral e focalizada, caminhando em direção à garantia de direitos universais, independentemente da inserção no mercado formal de trabalho, de forma a promover condições dignas de vida para todos os cidadãos. Nesse sentido, é fundamental repensar as políticas sociais vigentes, ampliando-as e tornando-as efetivamente inclusivas, capazes de responder às necessidades sociais de toda a população. Para isso, faz-se necessário superar a perspectiva meramente assistencialista e restritiva, integrando elementos que garantam efetivamente o exercício dos direitos sociais por todos, e não apenas por determinados segmentos privilegiados. (Raichelis, Couto, Yazbek, 2012, p. 453-460).
No entanto, Sposati (2009) defende que essas pessoas têm direito à proteção, enfatizando que “o campo da proteção social não contributiva significa que os acessos a serviços e benefícios devem independer de pagamento antecipado ou no ato da atenção” (Sposati, 2009, p. 8). Essa concepção amplia a compreensão de proteção social para além do indivíduo, reconhecendo que “sentir-se seguro – e ter a certeza da proteção social – diz respeito a todos” (Sposati, 2009, p. 22). Nesse sentido, o caráter civilizatório desse avanço não se restringe à oferta de benefícios financeiros, mas abrange, igualmente, o acesso a cuidados e serviços sociais enquanto direitos assegurados.
Além disso, conforme estabelecido pela Política Nacional de Assistência Social, as principais funções atribuídas à assistência social são: a) inserção, que diz respeito à inclusão dos beneficiários nas políticas sociais básicas, garantindo-lhes acesso aos bens, serviços e direitos sociais usufruídos pelo restante da população; b) prevenção, criando mecanismos de apoio para pessoas e famílias em situações de vulnerabilidade, protegendo seu patamar socioeconômico conquistado e mantendo seu acesso aos serviços sociais, ainda que estejam acima da linha de pobreza; c) promoção, por meio do incentivo à cidadania, rompendo com relações clientelistas e fragmentadoras, substituindo-as por relações baseadas no reconhecimento dos direitos; e d) proteção, assegurando o atendimento das populações socialmente excluídas ou em situação de vulnerabilidade por meio de ações diretas e indiretas de redistribuição de renda (Pnas – Brasil/MDS, 2005 apud Cruz; Guareschi, 2016, p. 65).
A imprecisão constitucional acerca da assistência social gera desafios significativos tanto no campo teórico quanto no político-legal, abrindo margem para interpretações subjetivas e restritivas sobre quem de fato é elegível para acessar os benefícios socioassistenciais. Segundo Paiva et al. (2012, p. 47), tal indefinição torna-se especialmente problemática porque se alinha com a lógica neoliberal, marcada por políticas focalizadas e restritivas, que buscam limitar a abrangência e o caráter universal da proteção social. Essa visão restritiva enfatiza a subsidiariedade do Estado, reduzindo ao mínimo sua responsabilidade pela proteção social dos cidadãos. A ambiguidade constitucional compromete a efetividade da assistência social enquanto direito fundamental e universal, perpetuando a exclusão de parcelas significativas e vulneráveis da população brasileira. Nesse sentido, torna-se essencial revisar e clarificar tais definições em âmbito legal e político, assegurando que a assistência social seja de fato reconhecida como um direito garantido a todos os cidadãos que dela necessitarem, sem espaço para discricionariedades que enfraqueçam a proteção social integral e equitativa que o sistema de seguridade social deve assegurar (Paiva et al., 2012, p. 47).
A Política Nacional de Assistência Social define claramente a Assistência Social como um “direito de cidadania, visando garantir o atendimento das necessidades básicas dos segmentos populacionais vulneráveis devido à pobreza e exclusão social” (Pnas, 2005, p. 68). Essa concepção posiciona a Assistência Social como um elemento essencial no sistema mais amplo de Proteção Social, fundamental para a promoção da equidade e justiça social. Dessa forma, além de assegurar direitos sociais, a política de Assistência Social atua diretamente como instrumento de inclusão e integração social, buscando reduzir as disparidades socioeconômicas e assegurar a dignidade humana.
Segundo Ericeira (2023), o processo de consolidação da Política de Assistência Social no Brasil tem avançado, apesar das fragilidades existentes, considerando as particularidades territoriais, regionais, culturais, étnico-raciais, econômicas e sociais. Nesse contexto, temas fundamentais como gestão, financiamento, controle social, capacitação continuada, tecnologias da informação, gestão do trabalho, e sistemas de monitoramento e avaliação têm sido amplamente discutidos visando fortalecer a Política Nacional de Assistência Social (PNAS) dentro do sistema brasileiro de proteção social. Esses diálogos buscam não apenas aumentar a eficiência e eficácia dos serviços oferecidos, mas também assegurar que a assistência social seja reconhecida e exercida como um direito legítimo de cidadania, acessível e relevante para todos os brasileiros, independentemente de sua localização geográfica ou condição socioeconômica.
Tendo em vista essas considerações teóricas sobre a proteção social no Brasil, torna-se necessário compreender como o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) foi institucionalizado para enfrentar essas questões na prática.
O SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL (SUAS) E SEUS FUNDAMENTOS
A partir dessas bases teóricas, é importante entender como o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) foi estruturado para responder concretamente aos desafios da universalização do direito à proteção social no Brasil.
Primeiro, a Política Nacional de Assistência Social (PNAS), instituída em 1998, consolidou as bases teóricas e operacionais que fundamentam o Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Esse documento estabeleceu diretrizes claras para a organização dos serviços socioassistenciais, destacando como pilares a centralidade da família, a participação comunitária e a descentralização administrativa. Em complemento à PNAS, surgiram as Normas Operacionais Básicas (NOBs) de 1997 e 1998, responsáveis por detalhar critérios relacionados à gestão, ao financiamento e ao monitoramento da política de assistência social, orientando a atuação dos estados e municípios na implementação desses serviços. Apesar desses avanços normativos significativos, ainda havia resistências à compreensão da assistência social como um espaço de transição para uma nova abordagem baseada em direitos. Conforme aponta Broto (2016, p. 38), prevaleceu, durante certo período, uma lógica que relegava a assistência social a um papel subsidiário, frequentemente delegando responsabilidades sociais a outros setores da sociedade e dificultando o reconhecimento da proteção social como direito universal.
Nesse sentido, o sistema de proteção social não contributiva consolidou-se como uma área específica da gestão pública, com a função de implementar ações capazes de responder às necessidades sociais básicas da parcela da população historicamente excluída do acesso aos direitos sociais. Como consequência, a assistência social passou a ser reconhecida efetivamente como responsabilidade do Estado, rompendo com a naturalização histórica da provisão social exclusiva da família ou da comunidade. Assim, tornou-se possível construir um novo campo de direitos humanos e sociais, direcionado especialmente aos grupos sociais que até então eram excluídos ou marginalizados (Broto, 2016, p. 133-134).
O Sistema Único de Assistência Social (SUAS) tem como princípio fundamental que o acesso à política socioassistencial ocorra na condição de sujeito de direito, direitos esses que são construídos e garantidos no âmbito coletivo, com destaque especial para a família como unidade central. Tal perspectiva busca romper com a lógica individualizante tradicionalmente presente nos serviços assistenciais. Contudo, conforme apontam Cruz e Guareschi (2016, p. 75), a implementação dessa visão enfrenta um contexto histórico complexo e desfavorável, uma vez que o acesso à assistência social no Brasil tem sido marcado historicamente por práticas meritocráticas, fundadas na benemerência e relações de subalternidade. Embora a centralidade na família represente um avanço ao retirar o foco exclusivo do indivíduo, essa estratégia traz o risco de deslocar a culpabilização da esfera individual para o núcleo familiar. Isso ocorre porque, na prática, as ações desenvolvidas no âmbito da assistência social frequentemente enfatizam as dificuldades individuais ou familiares, desconsiderando uma leitura mais ampla da realidade social, o que resulta na perda da perspectiva crítica das relações de classe.
Nesse contexto, o papel dos profissionais que atuam diretamente nos serviços socioassistenciais se torna essencial. A abordagem que concebe a garantia dos direitos sociais como princípio norteador das práticas representa uma mudança substancial no campo da Assistência Social. Tradicionalmente, os profissionais dessa área atuaram com foco nas dificuldades individuais, percebendo a população assistida como desprovida de protagonismo social. Essa perspectiva simplificada e despolitizada da realidade reforçou diagnósticos que enfatizavam a disfunção social dos usuários, deixando de lado uma compreensão das causas estruturais da vulnerabilidade social. Desse modo, implementar o SUAS, demanda uma significativa transformação nas práticas profissionais e nos referenciais teóricos que orientam a política assistencial. Torna-se necessário, portanto, adotar uma perspectiva crítica e politizada, compreendendo a realidade social a partir das estruturas que produzem vulnerabilidade, para que se possa consolidar efetivamente a assistência social enquanto política pública orientada pelos direitos sociais (Cruz; Guareschi, 2016, p. 75).
DESAFIOS NA CONSOLIDAÇÃO DO DIREITO
Embora a Constituição Federal de 1988 e a LOAS tenham representado avanços significativos, ainda se observa, na prática, uma forte tensão entre focalização e universalização. Essa tensão evidencia importantes desafios institucionais e políticos que precisam ser enfrentados para consolidar o SUAS como um sistema efetivamente universal e inclusivo.”
Para Broto (2016), a eficácia do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) está diretamente relacionada ao compromisso assumido pelos entes federados. Nesse sentido, a descentralização ultrapassa a simples redistribuição administrativa de poderes, recursos e responsabilidades, demandando dos entes federados uma atuação pautada na cooperação e na corresponsabilidade, a fim de potencializar a capacidade local de solucionar demandas sociais. Assim, quando algum ente federativo deixa de cumprir suas atribuições ou as realiza de forma insuficiente, surgem implicações negativas consideráveis. Uma dessas consequências é o comprometimento do funcionamento do sistema como um todo, visto que a rede de proteção social passa a apresentar fragilidades, afetando diretamente os cidadãos mais vulneráveis, que dependem desses serviços para garantir condições mínimas de vida digna.
Além disso, a ausência ou deficiência de compromisso por parte dos entes federados leva à negação dos direitos constitucionais estabelecidos pela Assistência Social enquanto política pública. Para Broto (2016, p. 22), a Assistência Social constitui-se em um direito fundamental cuja efetividade depende essencialmente da cooperação entre União, estados e municípios. Dessa forma, é imprescindível que os entes federados assumam suas responsabilidades integralmente e de maneira cooperativa, garantindo, assim, a operacionalidade plena do SUAS e o acesso universal da população aos benefícios e serviços socioassistenciais.
Nesse sentido, enfrentar esses desafios implica assegurar recursos financeiros e humanos adequados, investir continuamente na capacitação dos trabalhadores da assistência social e implementar sistemas robustos e transparentes de prestação de contas à sociedade. Da mesma forma, a participação social constitui elemento fundamental para que a população beneficiária tenha protagonismo efetivo na formulação, implementação e avaliação das políticas sociais. Para tanto, é indispensável criar e fortalecer espaços institucionais de diálogo, tais como conselhos e fóruns de assistência social, garantindo a inclusão ativa dos grupos sociais historicamente marginalizados (Da Silva Salgado et al., 2021, p. 17).
Ademais, destaca-se a necessidade de integração intersetorial da assistência social com outras políticas públicas, como saúde, educação, habitação e trabalho, o que possibilita uma abordagem mais holística e completa dos determinantes sociais relacionados à pobreza e à exclusão social. Esses aspectos devem compor uma agenda estratégica de direitos no âmbito da seguridade social, sustentada pelo diálogo permanente com diferentes setores da sociedade civil, assegurando, assim, o controle social sobre a oferta e a qualidade dos serviços prestados (Da Silva Salgado et al., 2021, p. 17).
Em uma perspectiva democrática, tais diretrizes concretizam as conquistas sociais previstas na Constituição Federal de 1988, conferindo sentido à política nacional de assistência social implementada por meio do SUAS. A consolidação de um sistema de proteção social efetivamente inclusivo, equitativo e justo é, portanto, essencial para a construção de uma sociedade mais justa e democrática (Nepp, 1989, p. 17). A Constituição Federal, ao ampliar o escopo dos direitos sociais e redefinir o perfil das relações trabalhistas e sociais no país, estabeleceu também um modelo descentralizado de intervenção pública no campo social, com significativas mudanças nas atribuições e responsabilidades do Estado (Nepp, 1989, p. 17).
O risco e a vulnerabilidade social são questões críticas que demandam uma abordagem baseada não apenas na provisão imediata de recursos, mas também no fortalecimento das condições de autonomia dos indivíduos e das famílias. Para enfrentar esses desafios de maneira eficaz, é imprescindível a implementação de políticas públicas voltadas à inclusão social e econômica sustentável. Isso significa desenvolver programas educacionais e de formação profissional que permitam aos sujeitos adquirir habilidades e competências necessárias para inserção no mercado de trabalho. Nesse sentido, é igualmente essencial assegurar o acesso universal e de qualidade a serviços básicos, tais como saúde, educação, habitação e saneamento básico, fatores essenciais para melhorar as condições de vida e reduzir as desigualdades sociais. Serpa, Virginia e Cavalcante (2015, p. 432), apoiadas pelo MDS (2009, p. 16), defendem que uma prática assistencial efetiva deve fundamentar-se na garantia de direitos sociais, articulada ao desenvolvimento humano e social, superando assim uma perspectiva tuteladora ou estritamente assistencialista, que se limita à satisfação pontual das necessidades imediatas.
Yasbek (2004) aponta que a persistente associação entre Assistência Social, assistencialismo e filantropia permanece como um dos maiores desafios desse campo. Décadas de clientelismo fortaleceram uma cultura tuteladora que restringe o protagonismo e a emancipação dos usuários, perpetuando sua dependência e limitando a autonomia necessária para a melhoria de suas condições de vida. Nesse cenário, redefinir a Assistência Social como um campo específico das políticas sociais públicas se torna imperativo, reconhecendo-a como uma área estruturada e sistemática voltada ao atendimento das necessidades sociais e ao desenvolvimento integral de indivíduos e comunidades. A superação dessa visão restritiva requer esforços contínuos na reformulação das práticas existentes, na qualificação dos profissionais e na implementação de políticas que promovam a participação ativa dos beneficiários na construção de suas trajetórias (Yasbek, 2004, p. 19).
Além disso, Boscari e Da Silva (2015) enfatizam que romper com as práticas tradicionais, fundamentadas na lógica do favor, é um desafio crucial para integrar efetivamente a Assistência Social à seguridade social. Essa integração visa consolidar o sistema como um mecanismo abrangente de proteção social, em sintonia com as demais políticas sociais (Boscari; Da Silva, 2015, p. 123).
Além disso, o desenvolvimento social sustentável depende diretamente da ampliação do acesso aos bens e recursos, o que implica necessariamente a distribuição justa e equitativa desses recursos, aumentando, assim, as capacidades individuais e familiares para alcançar maior autonomia e protagonismo social (Mds, 2009, p. 16; Serpa, Virginia, Cavalcante, 2015, p. 432).
Diante dessas considerações, verifica-se que, apesar dos avanços institucionais e normativos proporcionados pelo SUAS, persistem desafios estruturais que precisam ser enfrentados com urgência. A consolidação plena e universal da assistência social como direito não contributivo demanda, portanto, a ruptura definitiva com práticas restritivas, a clarificação das ambiguidades legais e o fortalecimento de estratégias que superem o legado assistencialista. Tal esforço é crucial não apenas para assegurar proteção social digna e igualitária, mas também para fortalecer o próprio Estado Democrático de Direito e promover efetivamente a cidadania plena no Brasil.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da análise crítica realizada, foi possível evidenciar que, apesar dos avanços institucionais trazidos pela Constituição Federal de 1988 e pela Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), persistem ainda hoje importantes desafios para a consolidação plena e efetiva do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) como política pública universal, não contributiva e garantidora dos direitos sociais. Embora a legislação brasileira estabeleça claramente a proteção social como um direito de cidadania, constatou-se que, na prática, o sistema permanece marcado por abordagens fragmentadas e focalizadas, impregnadas por resquícios históricos do assistencialismo e da filantropia.
A revisão bibliográfica apontou que essa realidade decorre, em grande medida, de uma herança histórica associada ao modelo da “cidadania regulada”, em que a garantia de direitos sociais esteve tradicionalmente vinculada à condição do trabalhador formal. Tal modelo resultou na exclusão significativa dos trabalhadores informais, desempregados e outros segmentos vulneráveis, que frequentemente dependem da proteção social de caráter pontual e emergencial, distanciada da garantia efetiva dos direitos fundamentais.
Nesse sentido, a pesquisa confirmou que a persistência dessas práticas assistencialistas dificulta o reconhecimento da assistência social como uma política pública universal e integralmente inclusiva. A ambiguidade constitucional e legal identificada em relação à definição do público elegível à proteção socioassistencial reforça a lógica focalizadora, impondo limites estruturais à universalização dos direitos. Além disso, os desafios associados à gestão descentralizada, ao financiamento adequado, à capacitação permanente dos profissionais e à integração intersetorial continuam a demandar atenção prioritária do poder público.
Diante desses resultados, reforça-se a necessidade urgente de superar práticas tradicionais ainda presentes nos serviços socioassistenciais, que mantêm a dependência e restringem o protagonismo e a emancipação social dos beneficiários. É essencial promover mudanças significativas nas concepções teórico-metodológicas que orientam a assistência social, avançando para um modelo fundamentado na garantia plena de direitos, e não em ações fragmentadas ou condicionadas ao mérito individual.
Por fim, destaca-se que a consolidação do SUAS como política pública universal, democrática e efetivamente inclusiva exige esforços conjuntos entre União, estados, municípios e sociedade civil. Implica também o fortalecimento do controle social e de espaços participativos para assegurar a formulação, implementação e monitoramento das políticas sociais. Dessa maneira, será possível avançar na construção de um sistema de proteção social que não apenas responda às vulnerabilidades imediatas, mas que contribua efetivamente para a emancipação e dignidade dos cidadãos brasileiros, consolidando-se como direito humano e civilizatório essencial à democracia e à justiça social.
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