Autor
Resumo
INTRODUÇÃO
A avaliação neuropsicológica é um recurso essencial no campo da Psicologia, especialmente quando há suspeitas de comprometimentos cognitivos ou comportamentais com possíveis origens neurológicas. No caso específico da deficiência intelectual (D.I.), esse processo torna-se ainda mais relevante, pois permite compreender, de forma ampla e integrada, o funcionamento global da criança em seus diversos contextos de vida. A deficiência intelectual, caracterizada por limitações significativas no funcionamento intelectual e no comportamento adaptativo, exige uma abordagem diagnóstica que vá além da simples mensuração do quociente de inteligência, considerando também aspectos sociais, emocionais e funcionais do indivíduo.
A atuação do psicólogo, nesse cenário, deve estar pautada por instrumentos técnicos e éticos que garantam uma avaliação precisa e humanizada. Por isso, é fundamental entender os componentes que estruturam a avaliação neuropsicológica e sua aplicabilidade na identificação de casos de D.I., levando em conta os desafios metodológicos e as possíveis adaptações necessárias diante das limitações da criança avaliada.
Diante desse contexto, o presente artigo tem como objetivo verificar os aspectos que compõem a avaliação neuropsicológica para fins de diagnosticar o déficit intelectual em crianças, por meio de uma pesquisa bibliográfica, analisando a literatura especializada e as diretrizes normativas vigentes que norteiam a prática do psicólogo nesse campo específico.
DEFICIÊNCIA INTELECTUAL (DI)
A nomenclatura referente à deficiência intelectual passou por diversas mudanças ao longo da história. Anteriormente, o termo mais comum era “retardo mental”, mas, em tempos mais recentes, a American Association on Intellectual and Developmental Disabilities (AAIDD) adotou o termo “deficiência intelectual (D.I.)”, buscando uma designação menos estigmatizante. O termo anterior, “deficiência mental”, era associado a uma visão pejorativa e excludente. Apesar da alteração terminológica já ter ocorrido há mais de meio século, os três critérios fundamentais para definir essa condição nos Estados Unidos continuam os mesmos: limitações no funcionamento intelectual, dificuldades adaptativas ao ambiente e início precoce (na infância).
A deficiência intelectual é, portanto, uma condição que envolve restrições significativas tanto na capacidade cognitiva quanto no comportamento adaptativo, o qual inclui uma gama de competências sociais e funcionais do dia a dia (AAMR, 2006). Trata-se de uma das diversas formas de deficiência do desenvolvimento, o que significa que seus sinais aparecem durante o período de desenvolvimento — nos Estados Unidos, esse recorte temporal corresponde a manifestações anteriores aos 18 anos. Em casos mais severos, os indícios são visíveis nos dois primeiros anos de vida, com atrasos motores, linguísticos e sociais. Já nas situações mais leves, os sintomas costumam se manifestar na fase escolar, quando surgem dificuldades de aprendizado. Algumas crianças menores de cinco anos podem apresentar atrasos globais no desenvolvimento, os quais podem ou não evoluir para um diagnóstico de deficiência intelectual (APA, 2013).
A deficiência intelectual está classificada no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), elaborado pela Associação Americana de Psiquiatria. Esse manual sistematiza os transtornos mentais com base em critérios diagnósticos, auxiliando profissionais da saúde. A deficiência intelectual se insere no grupo dos transtornos do neurodesenvolvimento, os quais têm origem no início da infância, frequentemente antes da entrada da criança na escola, e se caracterizam por prejuízos em diferentes áreas do funcionamento — seja pessoal, social, acadêmico ou profissional. Tais déficits podem variar desde dificuldades específicas, como no aprendizado ou no controle executivo, até limitações mais amplas em habilidades intelectuais e sociais (APA, 2013).
Atualmente, a deficiência intelectual é compreendida de forma multidimensional, contemplando cinco dimensões principais (AARM, 2006):
Conforme o DSM-5 (APA, 2013), o diagnóstico da deficiência intelectual depende da confirmação simultânea de três critérios:
O manual também determina graus de severidade do transtorno (leve, moderado, grave e profundo), definidos com base no funcionamento adaptativo e não apenas nos escores de QI. Isso porque é o nível de desempenho adaptativo que define o tipo e a intensidade dos apoios necessários. Apesar de o transtorno acompanhar a pessoa por toda a vida, a gravidade pode variar com o tempo. O curso clínico pode ser influenciado por fatores genéticos, médicos ou outras condições associadas, tornando essencial a implementação de intervenções e apoios contínuos ao longo da vida (APA, 2013).
AVALIAÇÃO NEUROPSICOLÓGICA E A IDENTIFICAÇÃO DA
DEFICIÊNCIA INTELECTUAL
De acordo com a Resolução nº 013/2007 do Conselho Federal de Psicologia (CFP), que substitui a de nº 002/2004, a Neuropsicologia é reconhecida como uma especialidade da Psicologia. Essa resolução define que o neuropsicólogo é responsável por atuar no diagnóstico, acompanhamento, tratamento e pesquisa envolvendo os processos cognitivos, emocionais, de personalidade e comportamento, sempre considerando sua relação com o funcionamento cerebral.
A avaliação neuropsicológica é conduzida a partir da integração entre conhecimentos teóricos oriundos das neurociências e práticas clínicas especializadas. São utilizados instrumentos padronizados para avaliar funções como atenção, percepção, linguagem, raciocínio, abstração, memória, aprendizagem, habilidades acadêmicas, processamento de informações, funções motoras, executivas, visuoconstrução e aspectos afetivos.
O neuropsicólogo desenvolve um processo clínico investigativo com o objetivo de compreender o sujeito e sua queixa, visando uma tomada de decisão mais precisa e adequada para cada situação. Segundo Ogden (1996), a Neuropsicologia trata do estudo do comportamento, das emoções e do pensamento humano em relação ao cérebro. Por isso, o neuropsicólogo é o profissional mais capacitado para realizar diagnósticos relacionados à deficiência intelectual, uma vez que utiliza diferentes técnicas e ferramentas para analisar tanto o funcionamento típico quanto alterações ou disfunções do sistema nervoso.
Entre as condições frequentemente analisadas sob a perspectiva neuropsicológica (CFP; CRP, 2013), destacam-se: a) doenças degenerativas, como Alzheimer, demências frontotemporais e esclerose múltipla; b) lesões ou doenças que afetam o sistema nervoso central, como AVC, traumas cranio encefálicos, tumores e epilepsias; c) transtornos mentais, incluindo TDAH, transtornos do desenvolvimento e de aprendizagem.
Na infância e adolescência, a avaliação neuropsicológica exige atenção especial à interpretação das funções cognitivas. Mais do que aplicar testes padronizados, o profissional deve ter amplo conhecimento sobre o desenvolvimento neurológico e considerar variáveis ambientais e estímulos cognitivos oferecidos à criança ao longo de sua trajetória. Para investigar possíveis casos de deficiência intelectual, é essencial considerar informações como idade, escolaridade, qualidade do ensino recebido, tipo de instituição frequentada, além de fatores socioculturais e econômicos.
Estudos indicam que a aprendizagem é um processo complexo que depende de diversos fatores, como o bom funcionamento cerebral, integridade do sistema nervoso e capacidade de processar e recuperar informações (Tabaquim, 2002). Crianças típicas apresentam tais condições, sendo capazes de aplicar seus conhecimentos em diferentes contextos, como no ambiente escolar ou cotidiano. Já crianças com possíveis diagnósticos de deficiência intelectual enfrentam limitações no desenvolvimento biopsicossocial, incluindo dificuldades motoras, cognitivas, linguísticas, psicossociais e nas atividades de vida diária.
Pesquisas com esse grupo revelam dificuldades na elaboração e generalização de informações, resolução de problemas, atenção e memória. Mesmo com orientações e instruções claras, essas crianças tendem a usar estratégias ineficazes, o que afeta seu desempenho nas tarefas propostas (Tabaquim, 2002).
Assim, a avaliação neuropsicológica é fundamental para pessoas com deficiência intelectual, pois possibilita a identificação precisa de suas funções executivas e outras habilidades cognitivas. Essa análise detalhada contribui para a elaboração de planos terapêuticos e reabilitativos centrados nas potencialidades do sujeito, buscando minimizar as dificuldades enfrentadas.
A reabilitação neuropsicológica, portanto, é uma área importante da atuação do psicólogo. Ela visa não apenas à melhora cognitiva do paciente, mas também ao suporte emocional e comportamental, promovendo o bem-estar e a qualidade de vida da pessoa e de seus familiares. O planejamento de intervenções adequadas, tanto em instituições quanto em ambientes domésticos, favorece a autonomia e a inclusão da pessoa com deficiência intelectual.
As disfunções neuropsicológicas na infância decorrem de múltiplos fatores — genéticos, ambientais, cerebrais e familiares — e, por isso, são diversas em suas manifestações (Miranda, 2006). O profissional precisa identificar tanto as áreas comprometidas quanto as habilidades preservadas da criança, para estruturar intervenções que trabalhem de forma equilibrada suas limitações e potencialidades.
Nesse sentido, a Neuropsicologia Infantil se dedica ao desenvolvimento de métodos de avaliação e diagnóstico precoce, o que permite uma atuação mais eficaz e com melhores resultados (Riechi, 2007). O processo avaliativo deve seguir critérios centrais descritos na Cartilha de Avaliação Psicológica (CRP, 2013), como o contexto da avaliação, seus objetivos, os construtos investigados, a adequação dos instrumentos ao perfil da criança e as condições técnicas e metodológicas dos procedimentos adotados.
Além disso, a avaliação deve ser ajustada a cada fase do desenvolvimento infantil ou juvenil, buscando identificar transtornos do desenvolvimento, déficits cognitivos e dificuldades de aprendizagem. É essencial investigar a história de vida da criança para detectar possíveis lesões cerebrais, idade de surgimento, tratamentos realizados e evolução funcional. A observação de sinais cognitivo-comportamentais permite diferenciar o desenvolvimento típico de quadros patológicos (Costa et al., 2004).
Por fim, é função do psicólogo interpretar criticamente os dados obtidos e avaliar se são suficientes e confiáveis para embasar decisões diagnósticas ou encaminhamentos, garantindo assim um processo de avaliação ético, preciso e eficaz.
AVALIAÇÃO NEUROPSICOLÓGICA: COMPOSIÇÃO
De acordo com Costa et al. (2004), a avaliação neuropsicológica é indicada sempre que houver indícios de dificuldades cognitivas ou comportamentais com possível origem neurológica. Esse tipo de avaliação contribui significativamente tanto para o diagnóstico quanto para o tratamento de diferentes condições neurológicas, distúrbios do desenvolvimento infantil, alterações psiquiátricas e problemas de conduta. Além disso, a Neuropsicologia fornece subsídios importantes para a atuação de profissionais envolvidos em intervenções terapêuticas voltadas à compreensão do funcionamento intelectual infantil (Costa et al., 2004).
O processo avaliativo neuropsicológico envolve etapas fundamentais para que se obtenham resultados consistentes. Conforme a Resolução CFP nº 06/2019, essas etapas podem ser descritas da seguinte forma:
Cunha et al. (2007) destacam que o uso combinado de testes e outras estratégias como as tarefas ecológicas permite uma avaliação mais abrangente, sistemática e voltada à resolução de problemas, considerando o contexto do indivíduo.
Nesse contexto, o papel do psicólogo inclui: a) avaliar a pertinência do diagnóstico proposto; b) realizar o diagnóstico diferencial; c) identificar potencialidades e dificuldades do sujeito e de sua rede de apoio para orientar a intervenção; d) formular uma compreensão dinâmica do caso com base na teoria psicológica; e) sugerir encaminhamentos adequados (Bandeira; Trentini; Krug, 2016).
O diagnóstico de deficiência intelectual, por sua vez, impacta profundamente a vida da criança e de sua família. Por isso, torna-se indispensável desenvolver estratégias de intervenção adaptadas ao sujeito e oferecer suporte à família com orientações que visem minimizar os efeitos das limitações identificadas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise da literatura permitiu compreender que a avaliação neuropsicológica voltada à identificação da deficiência intelectual em crianças requer uma abordagem multifatorial e cuidadosa, pautada na articulação entre teoria, técnica e ética profissional. Para além da aplicação de testes padronizados, o processo avaliativo deve considerar entrevistas clínicas, observações, análise do contexto familiar e escolar, bem como o uso de estratégias adaptadas, como as tarefas ecológicas, especialmente quando as limitações da criança dificultam a compreensão e execução dos instrumentos tradicionais.
A construção do diagnóstico de D.I. não deve se restringir à verificação de desempenho abaixo do esperado, mas sim à compreensão aprofundada do funcionamento global da criança, incluindo suas potencialidades, limitações e necessidades de apoio. Nesse sentido, o papel do psicólogo é também educativo e social, ao oferecer à família e à rede de apoio informações claras e orientações que favoreçam o desenvolvimento e a inclusão da criança em diferentes contextos.
Assim, conclui-se que a avaliação neuropsicológica, quando conduzida de forma técnica e ética, constitui um instrumento valioso para o diagnóstico da deficiência intelectual na infância, contribuindo diretamente para a construção de estratégias de intervenção eficazes e humanizadas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BANDEIRA, Denise Regina; TRENTINI, Clarissa; KRUG, Sonia Pompéia. Manual de avaliação neuropsicológica. Porto Alegre: Artmed, 2016.
COSTA, Maria Fátima P. da; ANDRADE, Vitória C. de; JACINTO, Caroline de C. Avaliação neuropsicológica: uma proposta de intervenção precoce. In: ANDRADE, Vitória C. de et al. Psicologia e Neurociências: interfaces e aplicações clínicas. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004. p. 101-122.
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA (CFP). Resolução CFP n.º 013/2007. Reconhece a especialidade em Neuropsicologia. Brasília: CFP, 2007.
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA (CFP). Resolução CFP n.º 06/2019. Regulamenta a Avaliação Psicológica no Brasil. Brasília: CFP, 2019.
CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA – CRP; CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA – CFP. Cartilha de Avaliação Psicológica: orientações e reflexões. Brasília: CFP/CRP, 2013.
CUNHA, Guilherme R. de et al. Avaliação neuropsicológica na prática clínica: teoria e prática. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007.
MIRANDA, Maria Célia; MUSZKAT, Mauro. Avaliação neuropsicológica de crianças com disfunção cerebral mínima: aspectos históricos e perspectivas atuais. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, v. 20, n. 3, p. 219-226, set. 2004.
MIRANDA, Maria Célia. Neuropsicologia infantil: uma perspectiva interdisciplinar. Revista de Psicologia da UNESP, Assis, v. 5, n. 1, p. 27-34, 2006.
OGDEN, John A. Neuropsicologia: uma abordagem clínica. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
RIECHI, Eliane de A. Identificação precoce da deficiência mental: uma proposta de atuação do psicólogo na educação infantil. In: DELLA BARBA, Patrícia G.; DELLA BARBA, Lúcio C. (Org.). Psicologia e Educação: temas de desenvolvimento infantil. Campinas: Alínea, 2007. p. 139-158.
TABAQUIM, Maria Lúcia. Deficiência mental e aprendizagem: um estudo neuropsicológico. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2002.
ZIMMERMANN, Marilene Proença Rebello de Souza et al. Avaliação psicológica no Brasil: diretrizes no campo educacional e clínico. São Paulo: Instituto de Psicologia da USP, 2014.
ZIMMERMANN, Marilene Proença Rebello de Souza et al. Laudos psicológicos: diretrizes para a construção do documento escrito. São Paulo: Instituto de Psicologia da USP, 2016.
Área do Conhecimento
Submeta seu artigo e amplie o impacto de suas pesquisas com visibilidade internacional e reconhecimento acadêmico garantidos.