História da assistência social no brasil: da caridade ao reconhecimento de direitos

HISTORY OF SOCIAL ASSISTANCE IN BRAZIL: FROM CHARITY TO THE RECOGNITION OF RIGHTS

HISTORIA DE LA ASISTENCIA SOCIAL EN BRASIL: DE LA CARIDAD AL RECONOCIMIENTO DE DERECHOS

Autor

Leandro Alfarth
ORIENTADOR
Prof. Dr. José Carlos Guimarães Junior

URL do Artigo

https://iiscientific.com/artigos/A264BF

DOI

Alfarth, Leandro . História da assistência social no brasil: da caridade ao reconhecimento de direitos. International Integralize Scientific. v 5, n 47, Maio/2025 ISSN/3085-654X

Resumo

Este artigo realiza uma ampla revisão bibliográfica sobre a evolução da assistência social no Brasil. Inicialmente, examina as práticas filantrópicas e caritativas que marcaram os primórdios das intervenções sociais. Evidencia a transformação dessas ações informais em políticas públicas estruturadas de direito social. Destaca o papel decisivo da Constituição Federal de 1988 na consolidação de um novo paradigma assistencial. Analisa os principais marcos legais que fundamentaram a institucionalização do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Discute, de forma crítica, as mudanças normativas que impulsionaram a formalização das práticas assistenciais. Integra uma abordagem comparativa entre diferentes períodos históricos para compreender a evolução do sistema. Aponta os avanços significativos alcançados na estruturação das políticas de assistência social. Evidência, contudo, os desafios persistentes de natureza estrutural e cultural herdados da tradição assistencialista. Conclui que, embora o sistema tenha se fortalecido, é necessário um constante aprimoramento para efetivar plenamente os direitos sociais.
Palavras-chave
assistência social; Brasil; política pública; filantropia; SUAS

Summary

This article provides a comprehensive bibliographic review on the evolution of social assistance in Brazil. Initially, it examines the philanthropic and charitable practices that marked the early stages of social interventions. It highlights the transformation of these informal actions into structured public policies of social rights. It emphasizes the decisive role of the 1988 Federal Constitution in consolidating a new assistance paradigm. It analyzes the main legal milestones that laid the foundation for the institutionalization of the Unified Social Assistance System (SUAS). It critically discusses the regulatory changes that boosted the formalization of assistance practices. It incorporates a comparative approach between different historical periods to understand the evolution of the system. It points out the significant advances achieved in the structuring of social assistance policies. However, it highlights the persistent structural and cultural challenges inherited from the traditional assistance model. It concludes that although the system has been strengthened, continuous improvements are necessary to fully realize social rights.
Keywords
social assistance; Brazil; public policy; philanthropy; SUAS.

Resumen

Este artículo realiza una amplia revisión bibliográfica sobre la evolución de la asistencia social en Brasil. Inicialmente, examina las prácticas filantrópicas y caritativas que marcaron los inicios de las intervenciones sociales. Destaca la transformación de estas acciones informales en políticas públicas estructuradas de derechos sociales. Enfatiza el papel decisivo de la Constitución Federal de 1988 en la consolidación de un nuevo paradigma asistencial. Analiza los principales hitos legales que fundamentaron la institucionalización del Sistema Único de Asistencia Social (SUAS). Discute de manera crítica los cambios normativos que impulsaron la formalización de las prácticas asistenciales. Integra un enfoque comparativo entre diferentes períodos históricos para comprender la evolución del sistema. Señala los avances significativos logrados en la estructuración de las políticas de asistencia social. Sin embargo, evidencia los desafíos persistentes de naturaleza estructural y cultural heredados del modelo asistencial tradicional. Concluye que, aunque el sistema se ha fortalecido, es necesario un perfeccionamiento continuo para hacer plenamente efectivos los derechos sociales.
Palavras-clave
asistencia social; Brasil; política pública; filantropia; SUAS.

INTRODUÇÃO

A assistência social no Brasil possui uma trajetória peculiar, marcada inicialmente por práticas caritativas e paternalistas que se distanciavam da ideia de um direito social. Desde o período colonial até a consolidação da República, observa-se a influência de ordens religiosas e ações filantrópicas isoladas, sem a constituição de uma política pública universal e efetivamente estruturada. Esse quadro, por muitos séculos, atendeu de modo fragmentado a parcela da população em situação de vulnerabilidade, reforçando uma lógica de favor que dificilmente dialogava com o conceito de cidadania.

Problema de Pesquisa: Quais fatores históricos e institucionais contribuíram para a transição da assistência social no Brasil de um modelo caritativo e paternalista para uma política pública de direito, e como essa transição impactou a efetividade atual do SUAS? 

Objetivo Geral: Analisar a trajetória histórica da assistência social no Brasil, destacando os principais marcos e transformações que levaram ao reconhecimento dessa política como parte da Seguridade Social e sua institucionalização no SUAS, identificando como fatores históricos influenciam sua efetividade atual.

Para responder a esse problema, este artigo revisita, no Desenvolvimento, as fases que compõem a evolução da assistência social, destacando:

  • Dos Primórdios Coloniais à Primeira Legislação Social (1500–1920): ênfase na ausência de políticas estatais e no domínio das iniciativas religiosas;
  • Entre Paternalismo e Institucionalização (1930–1960): consolidação do papel do Estado, principalmente após a criação de ministérios específicos e do Conselho Nacional de Serviço Social;
  • Entre o Autoritarismo e a Redemocratização (1964–1990): o impacto do regime militar no campo social e a retomada democrática, que abriu caminho para novos marcos legais;
  • Da Constituição de 1988 à LOAS: Rumo ao Reconhecimento de Direito: o ingresso da assistência na Seguridade Social e a regulação pela Lei Orgânica da Assistência Social, culminando no Sistema Único de Assistência Social (SUAS).

Ao longo dessas seções, pretende-se mostrar como fatores históricos, culturais e políticos interferiram na forma de se entender a pobreza, a proteção social e os direitos dos indivíduos. A análise conduz a reflexões acerca de como a assistência superou práticas pontuais de auxílio, assumindo progressivamente o caráter de política pública fundamentada em direitos. Dessa maneira, será possível compreender o arcabouço legal e as transformações institucionais que alicerçam a assistência social no Brasil contemporâneo, enfatizando a importância do SUAS como um dos principais pilares de proteção social não contributiva.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Este artigo adota uma revisão bibliográfica como principal estratégia metodológica, buscando identificar, reunir e analisar as produções acadêmicas, bem como documentos legais pertinentes, acerca da evolução histórica e legal da assistência social no Brasil. A partir do problema de pesquisa – compreender como a assistência social passou de um sistema caritativo e paternalista para uma política pública de direito, além de identificar os fatores históricos e legais determinantes nesse processo – a revisão bibliográfica permite contextualizar as diferentes fases de consolidação da assistência social, bem como evidenciar os marcos mais relevantes para sua institucionalização.

1 Fontes consultadas:

  • Livros e artigos de autores clássicos da área de Serviço Social e Políticas Públicas, com ênfase em obras que discutem a história da assistência social, a legislação e a institucionalização do SUAS.
  • Bases de dados online, como Google Scholar, Scielo e a Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), por meio de palavras-chave como “assistência social”, “caridade e paternalismo”, “LOAS”, “SUAS”, “Seguridade Social” e “história da assistência social no Brasil”.
  • Documentos legais e oficiais, tais como a Constituição Federal de 1988, a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) e a Lei nº 12.435/2011, que institui o SUAS, além de relatórios e normativas ministeriais.
    1. Critérios de seleção
  1. Abordassem diretamente a evolução histórica, marcos legais e transformações conceituais da assistência social no Brasil, desde o período colonial até a implementação do SUAS.
  2. Discutissem questões relativas ao caráter não contributivo da assistência social, à consolidação de direitos sociais e à transição de práticas filantrópicas para políticas públicas.
  3. Disponibilizassem acesso ao texto completo, garantindo a possibilidade de leitura integral e análise interpretativa.
  1. Estratégias de análise
  1. Leitura exploratória de livros, artigos e documentos legais para mapeamento de conteúdo.
  2. Organização temática dos achados, classificando-os de acordo com períodos históricos (colonial, império, república, regime militar e pós-1988) e marcos jurídicos (LOAS, Constituição de 1988, Lei nº 12.435/2011).
  3. Discussão crítica dos referenciais teóricos que abordam a caridade, paternalismo e a transição para uma política de direitos, buscando convergências e divergências entre os autores.

4 Limitações

Por se tratar de revisão bibliográfica, o estudo restringe-se às interpretações e dados disponíveis nas fontes consultadas, não incluindo pesquisa de campo ou entrevistas. Ademais, o enfoque recai sobre publicações de maior relevância e documentos oficiais que abordam a evolução legal e histórica da assistência social, podendo haver materiais complementares não contemplados nesta seleção inicial. Ainda assim, acredita-se que o conjunto analisado seja representativo das principais transformações e marcos que moldaram a assistência social no Brasil.

DESENVOLVIMENTO

A compreensão da assistência social no Brasil exige um olhar atento à sua construção histórica, marcada por diferentes concepções e práticas ao longo dos séculos. Por isso, a seguir apresentamos o desenvolvimento dividido em períodos cronológicos específicos, buscando evidenciar com clareza as mudanças significativas pelas quais passou esta política pública. Tal divisão permite ao leitor identificar de forma organizada as transições fundamentais: das ações assistencialistas coloniais, profundamente ligadas à caridade religiosa, ao modelo paternalista institucionalizado a partir dos anos 1930; passando pela influência do regime autoritário e pelas transformações ocorridas durante a redemocratização, até culminar na consolidação da assistência social como direito garantido constitucionalmente em 1988. Esta abordagem possibilita compreender como os desafios contemporâneos enfrentados pelo Sistema Único de Assistência Social (SUAS) permanecem enraizados nas práticas históricas anteriores, refletindo as dificuldades para superar, plenamente, as heranças assistencialistas.

DOS PRIMÓRDIOS COLONIAIS À PRIMEIRA LEGISLAÇÃO SOCIAL: ORIGENS HISTÓRICAS DA ASSISTÊNCIA NO BRASIL (1500–1920)

Após a chegada dos portugueses em 1500, o território que viria a se tornar o Brasil permaneceu, durante a primeira metade do século XVI, majoritariamente sob a organização social dos povos indígenas. Nessas comunidades, inexistia qualquer noção formal de assistência social ou de pobreza, uma vez que suas necessidades básicas – alimentação, moradia e cuidados de saúde – eram geridas de modo coletivo. Segundo Villanueva, Carvalho, Delalíbera e de Brito (2016, p. 159), a própria figura do Pajé atuava como curador espiritual, garantindo o bem-estar do grupo sem que houvesse instituições específicas de auxílio ou socorro.

Contudo, o processo de colonização acelerou a chegada de missionários, cuja função primária era catequizar as populações indígenas e difundir padrões morais junto aos próprios colonizadores. Esse papel coube, em grande medida, à Companhia de Jesus, fundada em 1534 por Inácio de Loiola, que se destacou ao estabelecer vilas, erguer capelas e escolas, além de impulsionar práticas agrícolas. Apesar de certa defesa dos povos indígenas em alguns casos, a ação missionária não estendeu a mesma proteção aos africanos trazidos como escravos, evidenciando o caráter estrutural da escravidão na sociedade colonial. Como sublinha Hoornaert (1992), esse fenômeno se reforçou pela adesão das ordens religiosas à ideologia escravagista, aspecto posteriormente questionado por Joaquim Nabuco em sua campanha abolicionista de 1883.

No contexto da Reforma Pombalina, houve modificações substanciais no âmbito educacional, como a implementação das aulas régias. Tais mudanças permitiram que os professores passassem a receber salário diretamente do rei, baseando-se no número de alunos atendidos, em vez de dependerem do sustento fornecido pelas grandes propriedades rurais (Villanueva et al., 2016, p. 161). Embora relevantes para o campo educacional, essas medidas não configuravam uma política de assistência social, pois se mantinham sob o viés de tutelar a formação moral e religiosa, sem enfrentar aspectos estruturais da pobreza ou do acesso a direitos.

A chegada da família real portuguesa, entre 1808 e 1840, desencadeou uma ampla reorganização administrativa e estimulou a formação de estruturas de governança e justiça, principalmente no Rio de Janeiro, que experimentou crescimento urbano abrupto (Saviani, 1988, p. 57). Ainda assim, a proteção aos mais vulneráveis permanecia centrada em iniciativas filantrópicas ou religiosas, como as Santas Casas de Misericórdia. 

Ao longo do século XVIII, a percepção de que os menos favorecidos poderiam receber assistência em troca de trabalho começou a emergir em países europeus. No Brasil, entretanto, essa concepção foi retardada pela continuidade da escravidão e pela ideia funcionalista de que “os problemas sociais […] eram tratados como um problema ou disfunção do indivíduo e nunca da estrutura social” (Martins, 1993, p. 73). A formalização efetiva da relação capital-trabalho avançou no país apenas em 1920, com o surgimento de legislações voltadas aos desafios emergentes dessa interação.

Um ponto de inflexão ocorreu em 1919, com a primeira lei que tratou de acidentes de trabalho, dando início a iniciativas de proteção aos trabalhadores. Em 1923, a Lei Elói Chaves instituiu a Caixa de Aposentadoria e Pensões para ferroviários, marco fundamental para a organização do seguro social estatal (Villanueva et al., 2016, p. 163). Essas medidas, juntamente com a criação do Código de Menores (1926), ampliaram a rede de segurança social, embora ainda focadas em categorias profissionais específicas. Gradualmente, essas legislações foram estendendo a cobertura a outros grupos, lançando as bases de um sistema previdenciário que, com o tempo, influenciaria a estrutura de uma política de assistência social mais robusta e abrangente.

ENTRE PATERNALISMO E INSTITUCIONALIZAÇÃO: A CONSOLIDAÇÃO DA ASSISTÊNCIA SOCIAL NO BRASIL (1930–1960)

A década de 1930 trouxe transformações significativas para a assistência social no Brasil, inaugurando uma nova fase na história institucional dessa política. Nesse período, o Estado passou a assumir um papel mais estruturado no desenvolvimento de programas sociais. Exemplo disso é a criação do Ministério dos Negócios da Educação e da Saúde, em 1930, e do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, em 1931, o que colocou sob responsabilidade oficial do governo a condução das políticas de educação, saúde e assistência social (Villanueva; Carvalho; Delalíbera; De Brito, 2016, p. 164). Essa mudança foi fundamental para consolidar a assistência social como um programa governamental, direcionando ações integradas nos campos social e econômico, a fim de promover o bem-estar da população.

Com a instauração do Estado Novo, em 1937, parte das reformas progressistas propostas na Constituição de 1934 foi deixada de lado. Em seu lugar, prevaleceu uma abordagem paternalista e benevolente da assistência social, marcada pela criação de medidas como o salário mínimo (1940), a Consolidação das Leis do Trabalho (1943) e a Legião Brasileira de Assistência (LBA), em 1942. Voltada inicialmente ao amparo das famílias de militares engajados na Segunda Guerra Mundial, a LBA inaugurou um processo de institucionalização que vinculava o Estado ao fornecimento de benefícios emergenciais, processo que Martins (1993, p. 78) aponta como o primeiro grande passo para moldar a assistência como política social gerenciada pelo governo.

Em 1938, ocorreu a primeira regulamentação oficial de práticas voltadas ao campo da Assistência Social, formalmente reconhecidas como Serviço Social. A instituição do Conselho Nacional de Serviço Social (CNSS) revelou um esforço de profissionalização e institucionalização do setor, ainda que, como observa Mestriner (2001, p. 57-58), o CNSS funcionasse fundamentalmente como um órgão consultivo e de cooperação, fornecendo suporte financeiro às organizações civis em vez de atuar diretamente na provisão de serviços. Esse período também evidenciou a consolidação de uma responsabilidade estatal laica, embora ainda permeada por relações de poder desiguais, em que os pobres permaneciam subordinados e sujeitos à avaliação de mérito para receber auxílios (Boscari, 2015, p. 110).

A Legião Brasileira de Assistência (LBA), instituída pelo governo de Getúlio Vargas em 1942 para apoiar as famílias dos “pracinhas” na Segunda Guerra Mundial, ampliou o escopo de atuação após o fim do conflito. Ficou, então, na assistência à maternidade e à infância, mantendo, no entanto, um perfil assistencialista e paternalista, reforçado pela figura das primeiras-damas. Segundo Sposati (2005, p. 19), a LBA representou o sentimento patriótico e a mobilização das “senhoras da sociedade” para acolher os militares, tornando-se posteriormente um marco federal na assistência social brasileira. Mesmo passando por reestruturações em 1946 e 1969, a LBA seguiu voltada a medidas emergenciais e paliativas no combate à pobreza (Faleiros, 1986), evidenciando a dificuldade de romper com o caráter caritativo que caracterizava suas origens.

Para cumprir seu papel, a LBA firmou parcerias com escolas de Serviço Social, em um movimento de legitimação mútua. Enquanto a organização buscava expandir sua capacidade técnica, o Serviço Social lutava pelo reconhecimento profissional. Nesse cenário, a LBA tornou-se fundação vinculada ao Ministério do Trabalho e Previdência Social em 1969, atuando paralelamente à Secretaria de Assistência Social criada durante o governo Geisel (Boscari, 2015, p. 111). Esse arranjo expressa a cooperação e o desenvolvimento paralelo que ocorria no âmbito da assistência, consolidando, ainda que de modo fragmentado, um sistema estatal de proteção social.

Ao longo da década de 1950, o processo de urbanização e industrialização intensificou a necessidade de programas sociais mais abrangentes, levando o governo a elevar os investimentos em educação, previdência, habitação e outros setores (Villanueva; Carvalho; Delalíbera; De Brito, 2016, p. 164). Foram criadas cem escolas de Serviço Social, cujo distanciamento das tensões políticas da época não impediu o aumento das reflexões críticas acerca do impacto e da eficácia das intervenções socioassistenciais.

Já na virada dos anos 1960, a expansão do pensamento crítico dentro do Serviço Social despertou questionamentos sobre a efetividade das práticas vigentes. Nesse mesmo período, o presidente Juscelino Kubitschek promulgou a Lei Orgânica da Previdência Social (LOPS), marco que Martins (1993, p. 79) considera o primeiro avanço significativo no campo previdenciário desde sua origem. Esse movimento reforçava o compromisso estatal com o bem-estar da população, ao mesmo tempo em que abria caminho para articulações mais sólidas entre a assistência e a previdência, ainda que a consolidação de uma política de assistência social não contributiva e de alcance universal demorasse a se efetivar.

ENTRE O AUTORITARISMO E A REDEMOCRATIZAÇÃO: A ASSISTÊNCIA SOCIAL NO BRASIL (1964–1990)

O golpe militar de 1964 provocou um rompimento brusco na democracia brasileira, extinguindo a participação efetiva da sociedade no processo decisório do governo. Em substituição, o regime adotou a concessão de benefícios sociais como forma de controle e desmobilização, tática que se materializou em 1966, com a criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS). Essa instituição centralizou e reforçou o domínio estatal sobre o sistema previdenciário, ao passo que a legislação trabalhista foi profundamente alterada pela substituição da estabilidade no emprego — prevista na CLT — pelo Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), em 1966 (Villanueva; Carvalho; Delalíbera; De Brito, 2016, p. 164-165).

O processo de abertura política iniciado ao final do regime militar atingiu seu ápice durante o governo de João Figueiredo (1980-1984), que reinstaurou o pluripartidarismo e promoveu eleições diretas para governadores dos estados. Na era da Nova República, liderada por José Sarney, o país adotou o lema “Tudo pelo Social”, alinhando-se às tendências neoliberais que então emergiam na América Latina. Nesse período, a assistência social foi influenciada por análises acadêmicas voltadas ao combate à pobreza e à expansão dos direitos sociais e políticos, culminando na promulgação da “Constituição Cidadã” de 1988 (Villanueva et al., 2016, p. 165). Posteriormente, em 1990, o governo Collor aprovou o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), marco fundamental para assegurar e proteger direitos de crianças e adolescentes no país.

Apesar dessas transformações institucionais e legais, a assistência social permaneceu essencialmente concentrada em práticas filantrópicas, vinculadas a instituições religiosas ou a sociedades beneficentes. Com foco em ações paliativas e na oferta pontual de auxílios, não havia uma estratégia sistemática que promovesse a inclusão social e econômica dos beneficiários. Nesse cenário, Yazbek (1996, p. 23) salienta que a consolidação da política de assistência social no Brasil está intimamente atrelada ao desenvolvimento e às crises do capitalismo, evidenciando uma transição gradual de práticas caritativas para um modelo mais formalizado de proteção social. Essa perspectiva é corroborada por Oliveira (2005), para quem a assistência brasileira sempre assumiu o caráter de resposta aos “incapazes e destituídos”, o que historicamente manteve as parcelas mais pobres da população em condições de dependência e subalternidade.

A implementação da política de assistência social, portanto, não ocorreu de forma linear ou homogênea; foi fruto de negociações entre interesses institucionais e políticos, envolvendo tanto o aparato estatal (governo) quanto atores da sociedade civil (partidos, sindicatos, organizações religiosas). Mestriner (2001) descreve esse percurso no estudo “O Estado entre a filantropia e a Assistência Social”, ilustrando a evolução de uma “filantropia caritativa” para uma “filantropia higiênica” e, mais tarde, para outros tipos de práticas disciplinadoras e pedagógicas, marcando profundamente o imaginário social sobre a pobreza. Segundo a autora, a assistência social brasileira passou por estágios e alianças que deixaram marcas resilientes, dificultando o rompimento com o paradigma do favor e a adoção efetiva de uma concepção de direitos.

Essa herança é ainda perceptível na forma como a assistência social se relaciona com interesses ideológicos, políticos e religiosos, permitindo que organizações privadas dominem espaços que, em tese, deveriam ser garantidos pelo Estado. Para Koga (2004, p. 51), essa sobreposição de poderes e a ausência de uma visão universalista obstaculizam a percepção da assistência social como direito público. Juscelino Kubitschek, por exemplo, reforçou essa ambiguidade ao estimular a filantropia por meio do Conselho Nacional de Serviço Social (CNSS), facultando às organizações a obtenção do “Certificado de Filantropia”. Tal medida consolidou a aliança do Estado com segmentos da sociedade civil, reforçando uma lógica liberal em que a proteção social é fortemente associada ao trabalho formal e à individualização das responsabilidades (Mestriner, 2001).

No âmbito das relações hierárquicas formadas a partir dessas dinâmicas, Vera Telles (2001) aponta para uma espécie de “patronagem” que dificulta a superação do paradigma do favor e o reconhecimento do conflito enquanto elemento necessário para a formação de uma cultura de direitos. Ao não nomear o conflito, as reivindicações por direitos são percebidas como subversões à lealdade e à obediência, perpetuando laços de dependência e beneficiando elites econômicas e políticas. Adorno e Castro (1985), por sua vez, descrevem como a filantropia do período imperial agiu como uma “estratégia normativa” para produzir indivíduos “docilmente úteis” ao projeto de expansão urbana e econômica, estigmatizando pobres e doentes como problemáticos para a ordem pública.

Paralelamente, Iamamoto e Carvalho (2005) destacam que a Igreja recuou na implementação de um projeto societário humanitário após os anos 1930, à medida que os problemas sociais exigiam respostas mais amplas do Estado. Ainda assim, como Pereira (2014) assinala, as iniciativas estatais permaneceram fragmentadas, sendo majoritariamente intermediadas por grandes organizações filantrópicas ou privadas sustentadas por financiamento público. Em termos comparativos, Fleury (2003) indica que o modelo brasileiro de proteção social se assemelha a regimes duais, com parte da população coberta pela previdência/assistência e outra parte deixada à margem.

DA CONSTITUIÇÃO DE 1988 À LOAS: RUMO AO RECONHECIMENTO DE DIREITO

A ruptura definitiva com o modelo de caridade em favor de um direito social deu-se a partir da Constituição de 1988, que inseriu a assistência social no sistema de Seguridade Social, ao lado da saúde e da previdência (Brasil, 1988). Essa inovação inaugurou um regime de proteção não contributivo, assegurando à população em vulnerabilidade o direito de acessar serviços, benefícios e programas de assistência, bem como atribuindo ao Estado a obrigação de provê-los. Como reforça Koga (2004, p. 49), a inclusão da assistência social na Seguridade Social representou um marco inédito, pois consolidou seu caráter de política pública de responsabilidade estatal, rompendo com a noção de atendimentos ocasionais e pontuais.

Sposati (2009) destaca a importância dessa transição, sublinhando a passagem de uma abordagem esporádica e fragmentada para uma integração mais sólida no âmbito da proteção social. A Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), em 1993, reforçou esse movimento ao definir a assistência como um direito social e dever do Estado, rompendo formalmente com práticas baseadas em caridade e favor (Brasil, 1993). Yazbek (1996, p. 45) considera essa mudança um marco fundamental na institucionalização do campo assistencial, pois deslocou as ações assistenciais de uma lógica clientelista para uma estrutura regida por direitos.

Na esteira do que foi estabelecido pela LOAS, emergiu um arranjo de gestão descentralizado, envolvendo Conselhos de Assistência Social, Fundos de Assistência Social e planos municipais, estaduais e federal. Segundo Koga (2004, p. 54), o envolvimento de conselhos, conferências e fóruns setoriais possibilitou, pela primeira vez, o reconhecimento da assistência social como direito universal e dever do Estado, superando a antiga crença de que bastariam ações pontuais de filantropia. O processo não se restringiu à lei: exigiu um movimento crescente de participação popular e pactuação federativa para institucionalizar a assistência enquanto política pública e não apenas ação eventual.

Conforme esse arcabouço avançava, outro momento crítico ocorreu com a criação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), formalizado pela Lei nº 12.435, de 2011, que alterou a LOAS. Essa alteração padronizou e expandiu os serviços em todos os entes da federação, definindo uma rede de proteção social abrangendo proteção básica e especial, de média e alta complexidade (Ferla, 2021, p. 26). Na prática, significou reduzir a fragmentação da assistência social em múltiplas iniciativas e promover o cofinanciamento dos serviços, além de estruturar a gestão descentralizada e participativa (Sposati, 2006).

A Política Nacional de Assistência Social (PNAS), aprovada em 2004, foi igualmente determinante para a consolidação do SUAS (Koka, 2004, p. 61). Nela se estabelece a concepção de descentralização, participação e direção única como eixos, permitindo a implantação de uma gestão mais eficiente e equitativa. A participação social por meio de conselhos e conferências, por exemplo, incrementou a transparência e a accountability no uso dos recursos, além de ampliar o debate sobre as prioridades na oferta de serviços socioassistenciais. O caráter cidadão dessa política rompe progressivamente com o assistencialismo de cunho filantrópico, transformando a assistência em direito público.

Segundo Sposati (2006), esse movimento resultou em novas formas de organização dos serviços e equipes de trabalho, bem como em mecanismos aprimorados de monitoramento e avaliação. Com a ratificação da PNAS, a estruturação dos CRAS (Centros de Referência de Assistência Social) e dos CREAS (Centros de Referência Especializados de Assistência Social) passou a contemplar níveis distintos de complexidade do atendimento, fortalecendo a universalidade e a efetividade da oferta assistencial. O município, como ator central, assumiu a responsabilidade de identificar as demandas locais e articular-se com as esferas estadual e federal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A evolução da assistência social brasileira, reconstruída ao longo do Desenvolvimento, evidencia um percurso complexo que partiu de ações caritativas e filantrópicas, arraigadas a práticas religiosas e ao paternalismo estatal, para chegar à conformação de um direito dentro da Seguridade Social. Se, nos primórdios, o foco recaiu sobre iniciativas pontuais e fragmentadas — pouco comprometidas com a universalização de direitos —, gradualmente ganhou corpo a consciência acerca da responsabilidade estatal, culminando com a Constituição de 1988 e a Lei Orgânica da Assistência Social (1993).

Esse processo, entretanto, não ocorreu de forma linear ou isenta de tensões. A estrutura social, influenciada por interesses políticos e pela cultura do favor, retardou a efetivação de uma assistência embasada em direitos. Mesmo após a promulgação da LOAS, a consolidação de mecanismos de descentralização e participação social exigiu ajustes contínuos, o que se tornou mais factível com a criação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). A partir daí, a assistência social pôde estabelecer níveis diferenciados de proteção (básica e especial), definindo um marco institucional que favorece a articulação entre União, estados, municípios e sociedade civil.

Retomando o problema de pesquisa, observa-se que a superação do modelo caritativo/paternalista em prol de uma assistência como política pública de direito é fruto de um conjunto de fatores:

  1. A pressão social e acadêmica para reconhecimento da pobreza como questão estrutural;
  2. A reforma constitucional de 1988, que incluiu a assistência no âmbito da Seguridade Social;
  3. A elaboração e regulamentação de dispositivos legais, como a LOAS e a lei que institui o SUAS;
  4. O crescente entendimento de que a assistência social não pode ser vista como favor, mas responsabilidade do Estado, calcada na participação da sociedade civil e no cofinanciamento público.

 

Dessa forma, o SUAS representa o ápice desse processo, ao promover uma gestão descentralizada e participativa, ampliar o pacto federativo em torno da proteção social e reafirmar a assistência como direito fundamental, equiparando-a à saúde e à previdência no tripé da Seguridade Social. Os resultados positivos e as possibilidades de aprimoramento, contudo, dependem da contínua luta por recursos financeiros, formação profissional, monitoramento e controle social, mantendo vivo o princípio de que a assistência social é elemento essencial para a construção de uma sociedade mais justa e menos desigual.

Em síntese, a trajetória histórica aqui apresentada revela que a transição da caridade ao direito só se tornou viável graças a um marco legal robusto e à progressiva conscientização da população e dos gestores. Ainda que desafios persistam, o caminho aberto pela LOAS e fortalecido pelo SUAS sinaliza um compromisso crescente do Estado brasileiro com a universalização do acesso à proteção social não contributiva, garantindo direitos socioassistenciais e contribuindo para a consolidação de uma cidadania mais plena.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOSCARI, M.; DA SILVA, F. N. A trajetória da assistência social até se efetivar como política social pública. Revista Interdisciplinar de Estudos em Saúde, [S. l.], v. 4, n.º 1, p. 108–127, 2015. DOI: 10.33362/ries.v4i1.341. Disponível em: https://periodicos.uniarp.edu.br/index.php/ries/article/view/341. Acesso em: 7 maio 2024.

CARVALHO, S. Gestão social e descentralização: princípios para uma nova agenda. São Paulo: Ed. Universidade de São Paulo, 1999.

FALEIROS, Vicente de Paula. O que é a política social. São Paulo: Brasiliense, 1986.

FERLA, Ledi. A Política de Assistência Social como afiançadora das Seguranças Sociais: Análise da gestão Municipal no Centro de Referência de Assistência Social – CRAS Cachoeirinha, em Dourados/MS. 2021. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Faculdade de Ciências Humanas, Universidade Federal da Grande Dourados, Dourados, MS, 2021. Disponível em: https://portal.ufgd.edu.br/setor/biblioteca/repositorio. Acesso em: 25 abr. 2024.

FLEURY, Sônia. Seguridade e Assistência Social. Brasília: Inesc, 2003.

HOORNAERT, Eduardo et alii. História da Igreja no Brasil. 4. ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 1992.

IAMAMOTO, M. V.; CARVALHO, R. Relações sociais e serviço social no Brasil: esboço de uma interpretação histórico-metodológica. 17. ed. São Paulo: Cortez, 2005.

KOGA, Dirce. Política de Assistência Social no Brasil: a Assistência Social como política de proteção social. In: CYMBALISTA, Renato; MOREIRA, Tomás (Orgs.). São Paulo: PUC/SP, 2004. (PDF document).

MARTINS, Lília Christina de O. Considerações sobre a assistência social. 1993. Tese (Doutorado) – UNESP, [local não informado].

MESTRINER, Maria Luiza. O estado entre a filantropia e a assistência social. São Paulo: Cortez, 2001.

OLIVEIRA, Ana Maria Caldeira; IANNI, Aurea Maria Zöllner; DALLARI, Sueli Gandolfi. Controle social no SUS: discurso, ação e reação. Ciência & Saúde Coletiva [online], v. 18, n. 8, pp. 2329-2338, 2013. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232013000800017. Acesso em: 08 ago. 2024.

PEREIRA, K. Y. L. Intersetorialidade na política de assistência social: um estudo sobre os centros de referência de assistência social (CRAS) em Teresina/PI. 2014. Dissertação (Mestrado em ______) – Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2014.

SAVIANI, Demerval. Educação e política no Brasil. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1988.

SPOSATI, Aldaíza. Avaliação de políticas e programas sociais. São Paulo: Veras Editora, 2006.

SPOSATI, Aldaíza. Modelo brasileiro de proteção social não contributiva: concepções fundantes. São Paulo: MDS/UNESCO, 2009.

TELES, Vera. Pobreza e Cidadania. São Paulo: Editora 34, 2001.

VILLANUEVA, E. R.; DE CARVALHO, I. M.; DELALÍBERA, M.; DE BRITO, R. L. História da assistência social no Brasil. Multitemas, [S. l.], n.º 14, 2016. Disponível em: https://www.multitemas.ucdb.br/multitemas/article/view/1163. Acesso em: 6 maio 2024.

YAZBEK, Carmelita. Estado e política social. 1996, p. 23-45. Disponível em: https://www.paulus.com.br/assistencia-social/wp-content/uploads/2017/03/Carmelita-Yazbek.pdf. Acesso em: 25 abr. 2024.

Alfarth, Leandro . História da assistência social no brasil: da caridade ao reconhecimento de direitos.International Integralize Scientific. v 5, n 47, Maio/2025 ISSN/3085-654X

Referencias

BAILEY, C. J.; LEE, J. H.
Management of chlamydial infections: A comprehensive review.
Clinical infectious diseases.
v. 67
n. 7
p. 1208-1216,
2021.
Disponível em: https://academic.oup.com/cid/article/67/7/1208/6141108.
Acesso em: 2024-09-03.

Share this :

Edição

v. 5
n. 47
História da assistência social no brasil: da caridade ao reconhecimento de direitos

Área do Conhecimento

Os desafios da concessão do benefício de prestação continuada às pessoas com deficiência e idosa: Burocracia, avaliação e inclusão social
vulnerabilidade social; acesso ao benefício; pessoas idosas; deficiência; cidadania.
Bullying: Desafios e dificuldades na aprendizagem de vítimas no ambiente escolar
bullying; violência; escola.
Violência institucional e interseccionalidade: Quando o estado também violenta
violência institucional; racismo estrutural; exclusão social.
Violência contra a mulher como expressão histórica das relações de poder: Genealogia, estrutura e permanências
Justiça de gênero; Violência institucional; Patriarcado.
Políticas públicas e resistência feminina: enfrentamentos, limites e potencialidades
solidariedade feminina; resistência coletiva; violência de gênero.
A naturalização da violência: Cultura, mídia e o imaginário coletivo sobre a mulher
violência simbólica; mídia; gênero.

Últimas Edições

Confira as últimas edições da International Integralize Scientific

maio

Vol.

5

47

Maio/2025
feature-abri-2025

Vol.

5

46

Abril/2025
MARCO

Vol.

5

45

Março/2025
FEVEREIRO (1)

Vol.

5

44

Fevereiro/2025
feature-43

Vol.

5

43

Janeiro/2025
DEZEMBRO

Vol.

4

42

Dezembro/2024
NOVEMBRO

Vol.

4

41

Novembro/2024
OUT-CAPA

Vol.

4

40

Outubro/2024

Fale com um com um consultor acadêmico!

O profissional mais capacitado a orientá-lo e sanar todas as suas dúvidas referentes ao processo de mestrado/doutorado.