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Resumo
INTRODUÇÃO
A educação por excelência tornou-se um ideal difundido, amplamente presente nos discursos das políticas públicas educacionais, nos documentos oficiais e nas avaliações institucionais em larga escala. No entanto, é pertinente questionar até que ponto esse conceito é realista, democrático e alcançável, especialmente no contexto das escolas públicas. Este artigo nasce, assim, de uma inquietação constante — especialmente por parte da classe docente — frente à disparidade entre o ideal proclamado e a prática cotidiana, e busca refletir criticamente sobre o que vem sendo comumente chamado de “educação de excelência”.
A expressão “educação de excelência”, embora aparente apontar para um ideal desejável — o de uma educação que alcance altos padrões de qualidade, equidade e eficácia —, suscita questões essenciais: excelência para quem? Excelência de quê? Em que condições? E, finalmente, com que finalidade?
A busca por “excelência” tem orientado políticas educacionais que se materializam em reformas curriculares, estratégias de gestão e políticas de responsabilização, frequentemente desconsiderando os contextos socioculturais das escolas públicas e as condições concretas em que se dá o processo educativo. A retórica da excelência, quando desvinculada da realidade vivida por professores e alunos, pode assumir um caráter excludente, elitista e, por vezes, inatingível, servindo mais à lógica da competição e do desempenho do que à formação integral dos sujeitos. Paradoxalmente, enquanto se propaga um discurso meritocrático que celebra o alto rendimento, observa-se, na prática cotidiana das escolas públicas, um nivelamento por baixo: não se exige leitura, nem escrita, tampouco compreensão crítica. Em muitos casos, sequer é necessário responder — a progressão acontece independentemente do esforço ou da aprendizagem efetiva. Essa lógica configura uma semiformação, nos moldes criticados por Adorno em Teoria da Semicultura (1996), em que os sujeitos são mantidos em um estado de aparente escolarização, mas privados do acesso real ao conhecimento, à reflexão e à autonomia intelectual — a exclusão branda, como sugere Bourdieu.
Refletir sobre a existência — ou não — de uma “educação por excelência” implica, portanto, repensar os próprios fundamentos do que se entende por qualidade na educação. Retomando autores como Adorno e Bourdieu, que problematizam a lógica de reprodução das desigualdades por meio da escola e denunciam a perda do caráter formativo em prol de uma visão tecnicista e instrumental, este artigo propõe uma análise crítica do ideal de excelência a partir das contradições que ele encerra no cenário educacional brasileiro contemporâneo.
A escolha desse tema se justifica, ainda e sobretudo, pela urgência em contribuir com um debate que ultrapasse os limites dos indicadores e se volte para as condições reais de formação — semiformação ou deformação — dos sujeitos em um sistema que, por vezes, máscara com a retórica da excelência a negação do acesso equitativo ao saber, à cultura e à cidadania. Assim, problematizar o conceito de excelência educacional torna-se também um caminho para pensar outras formas possíveis de ensinar, aprender e formar sujeitos críticos, autônomos e plenamente humanos.
A ORIGEM E O DISCURSO DA “EXCELÊNCIA” NA EDUCAÇÃO
Nas últimas décadas, o Brasil tem sido palco de inúmeras reformas educacionais que, sob o pretexto de democratizar o acesso à educação e promover a equidade, acabaram por instaurar um modelo de ensino pautado por lógicas gerenciais e produtivistas. Desde a década de 1990, com a consolidação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB nº 9.394/96), e com a implementação de avaliações externas em larga escala, como o SAEB (1994), a Prova Brasil (2005) e o ENEM (1998), a noção de qualidade educacional passou a ser mediada por índices e resultados estatísticos, muitas vezes descolados da realidade concreta das escolas públicas.
Com isso, inicia-se no Brasil uma virada gerencialista na gestão educacional: substitui-se o compromisso com a formação humana pelo foco em metas, desempenho e resultados quantificáveis — um movimento alinhado às recomendações dos organismos internacionais, como o Banco Mundial e a OCDE.
Nesse contexto, a adoção da progressão continuada (adotada no Brasil a partir da criação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, em 1996), posteriormente reforçada por políticas de aprovação automática, inscreve-se nesse mesmo movimento. Ainda que tais medidas tenham surgido sob a bandeira da inclusão e da luta contra a evasão escolar, na prática, elas contribuíram para o esvaziamento do processo formativo, desestimulando o esforço e enfraquecendo o papel do conhecimento como eixo central da escolarização. Nesse cenário, a lógica meritocrática coexiste com a permissividade: exige-se excelência nos discursos institucionais, ao mesmo tempo em que se tolera — e até se institucionaliza — o não aprender. Como aponta Luiz Carlos de Freitas (2012), esse paradoxo revela uma política de resultados que, ao invés de transformar a escola, a submete a ciclos de avaliação que apenas reforçam desigualdades históricas.
O Plano Nacional de Educação (PNE) – estabelecido pela Lei nº 13.005/2014 –, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) – homologada em 2017 (Educação Infantil e Ensino Fundamental) e 2018 (Ensino Médio) – e outras diretrizes recentes intensificaram esse paradoxo. Ao mesmo tempo em que os termos “competências”, “habilidades” e “formação integral” são amplamente celebrados nos documentos oficiais e nos discursos institucionais como pilares de uma educação de qualidade, essas políticas operam por meio de um currículo prescritivo, que fragmenta o saber e subordina o ensino à lógica do desempenho.
A centralidade atribuída à “formação para o século XXI” — termo recorrente em relatórios internacionais — promove, na prática, uma formação adaptativa, tecnicista e pobre em conteúdo crítico. A educação, nessa prática instaurada, volta-se em preparação para o mercado, e não para a cidadania.
A educação, nesse contexto, torna-se funcional, técnica e instrumental — centrada na ideia de formar um sujeito “ajustado” às demandas do mercado, em detrimento de uma formação crítica, ética e humanizadora. Ao se analisar o discurso institucional, nota-se a presença recorrente de expressões como “educação de qualidade”, “excelência”, “resultados”, “eficiência” e “gestão por desempenho”. No entanto, esses termos, quando não acompanhados de condições estruturais, de valorização docente e de investimento real na formação dos alunos, tornam-se vazios, operando como eufemismos de um sistema que, ao invés de promover emancipação, reforça desigualdades e perpetua uma semiformação (Adorno, 1996) mascarada por índices quantitativos.
Desse modo, a lógica da responsabilização substitui o direito à aprendizagem: em vez de garantir as condições para que se aprenda, transfere-se a culpa do fracasso para alunos e professores — mantendo intocadas as estruturas que o produzem.
A REALIDADE DAS ESCOLAS PÚBLICAS: EXCELÊNCIA PARA QUEM?
Se, por um lado, o discurso oficial proclama a busca por uma educação de excelência como horizonte para todas as escolas, por outro, a realidade das instituições públicas revela um cenário profundamente desigual e desestruturado. O que se observa, em muitas redes públicas, é um cotidiano marcado por reformas constantes, muitas delas mal planejadas, que impõem recomeços sucessivos sem considerar os projetos já em andamento. Tais mudanças, longe de promoverem avanços efetivos – uma vez que, grande parte das vezes, se limita a alterar nomenclaturas e reorganizar estruturas superficiais sem transformar as condições reais de ensino e aprendizagem – têm contribuído para o aumento da descontinuidade pedagógica, da sobrecarga docente e da insegurança institucional.
A esse respeito, sobre a instabilidade provocada pela ausência de continuidade nas políticas educacionais, o professor Dermeval Saviani (2008) pontua:
A outra característica estrutural da política educacional brasileira, que opera como um óbice ao adequado encaminhamento das questões da área, é a descontinuidade. Esta se manifesta de várias maneiras, mas se tipifica mais visivelmente na pletora de reformas de que está povoada a história da educação brasileira. Essas reformas, vistas em retrospectiva de conjunto, descrevem um movimento que pode ser reconhecido pelas metáforas do ziguezague ou do pêndulo. (SavianiI, 2008, p. 11)
Essas mudanças, muitas vezes motivadas por interesses políticos e não por diagnósticos pedagógicos consistentes, impõe recomeços constantes. Cada nova diretriz traz consigo promessas de melhoria, mas raramente se concretiza em práticas eficazes. Falta tempo. Falta escuta. Falta investimento. Mas não faltam exigências – os professores, bem o sabem.
Apesar de serem, em tese, convidados a participar das audiências públicas e consultas sobre novas diretrizes, os docentes raramente conseguem, de fato, exercer essa participação. Estão em sala de aula quando tudo é discutido e decidido. A consulta, muitas vezes, torna-se apenas um ritual institucional — marcado mais por uma aparência de escuta do que por um diálogo real. O resultado é que as políticas educacionais seguem sendo pensadas de cima para baixo, por quem está distante da realidade escolar.
Essa dissociação entre quem pensa e quem vive a escola não é recente. Como explica Luiz Carlos de Freitas (2003), a escola, pressionada pelas exigências da acumulação do capital, foi obrigada a se formalizar, separando-se da vida e subordinando professores e alunos a regras externas a seu cotidiano — uma leitura que ele faz a partir das análises de Vincent, Lahire e Thin (2001).
Esse contraste vai cavando um fosso entre dois mundos educacionais que coexistem sob o mesmo sistema, mas que vivem realidades absolutamente distintas. A excelência, proclamada como direito de todos, na prática, se concretiza apenas para alguns. De um lado, está a escola pública, especialmente nas periferias urbanas e zonas rurais, marcada pela precarização das condições de trabalho, instabilidade curricular, falta de recursos e sobrecarga docente. De outro, estão as escolas privadas de médio e alto padrão, com maior estabilidade institucional, acesso a tecnologias, infraestrutura adequada e continuidade pedagógica. Embora ambas estejam submetidas às mesmas diretrizes nacionais, como a BNCC (2018) e o ENEM, vivem experiências educacionais radicalmente distintas — o que evidencia que o sistema é uno apenas em aparência.
Nas escolas públicas, sobra esforço e faltam meios. A sobrecarga docente, a carência de estrutura e a fragilidade da formação continuada impedem que as propostas se sustentem. O ideal de qualidade se esvazia quando não há condições concretas para que ele se realize. E é nesse cenário que a ilusão da excelência se instala como forma de legitimação. Como já alertava Bourdieu,
O sistema de ensino aberto a todos, e ao mesmo tempo estritamente reservado a poucos, consegue a façanha de reunir as aparências da ‘democratização’ e a realidade da reprodução, que se realiza num grau superior de dissimulação, e por isso com um efeito maior ainda de legitimação social. (Bourdieu, 2008, p. 485)
Enquanto isso, perpetua-se o ciclo da semiformação: forma-se o suficiente para manter os sujeitos dentro do sistema, mas não para que questionem esse mesmo sistema. A escola pública, nesse modelo, passa a operar como um espaço de contenção — uma espécie de zona neutra onde se permanece, mas não necessariamente se aprende.
A FALÁCIA DA EXCELÊNCIA: ENTRE A PROMESSA DE FORMAÇÃO E A REALIDADE DO VAZIO EDUCACIONAL
A crítica à excelência educacional frequentemente assume dois polos: de um lado, os que denunciam o caráter tecnicista e voltado ao mercado das diretrizes atuais; de outro, os que clamam por uma formação crítica e emancipatória, inspirada por valores éticos e humanos. No entanto, o cenário observado nas escolas públicas brasileiras revela uma realidade ainda mais preocupante: não se forma para o mercado, nem para a autonomia.
A promessa de excelência e de formação plena não se realiza. Em vez disso, exige-se dos sujeitos a conformação a um sistema que os mantenha em estado de não-emancipação. Como adverte Adorno (1995, p. 43), “a realidade não cumpre a promessa de autonomia […] os que permanecem impotentes não conseguem suportar uma situação melhor sequer como mera ilusão; preferem livrar-se do compromisso com uma autonomia em cujos termos suspeitam não poder viver.”. Desse modo, o fracasso da escola em garantir um projeto formativo efetivo contribui para essa recusa: nega-se à juventude não só o saber, mas também a possibilidade de desejar algo diferente — e, assim, perpetua-se um sistema que não forma sujeitos, mas adapta corpos.
O que se vê é uma formação esvaziada, fragmentada, incapaz de garantir sequer os fundamentos mínimos para que os estudantes prossigam seus estudos ou ingressem no mundo do trabalho. Muitos concluem o Ensino Médio em situação de analfabetismo ou de analfabetismo funcional, sem domínio básico da leitura, da escrita ou do raciocínio lógico. Não compreendem o que leem, não escrevem com clareza, não interpretam problemas simples, não argumentam. Ainda assim, os índices de aprovação seguem elevados em todas as etapas da Educação Básica. Segundo dados do Censo Escolar (INEP, 2024), em 2023, 94,0% dos alunos foram aprovados nos anos finais do Ensino Fundamental e 91,3% no Ensino Médio — índices que se mantêm estáveis desde 2019, mesmo após o período crítico da pandemia.
Gráfico 1 – Taxa de aprovação, segundo a etapa de ensino – Brasil (2019–2023)
Fonte: Elaborado pela DEED/Inep com base nos dados do Censo Escolar da Educação Básica (Brasil. Inep, 2024).
Os concluintes são abandonados por um sistema que insiste em promovê-los para que os números permaneçam altos — mesmo que o aprendizado real não aconteça. O gráfico abaixo ilustra essa tendência, revelando o abismo entre aprovação formal e formação real. A educação, nesse contexto, parece operar menos como ferramenta de emancipação ou inserção social, e mais como um dispositivo de contenção: mantém-se o aluno na escola, mas não se garante o que de fato deveria constituir o sentido da escolarização.
O que se observa, portanto, é uma política de números — e não de sujeitos. As taxas de aprovação são celebradas como sinal de progresso educacional, e os boletins estatísticos ganham status de vitória. No entanto, pouco se discute a fundo o que esses números realmente significam: aprovação sem proficiência, permanência sem aprendizagem, diploma sem saber.
Enquanto os índices de aprovação seguem elevados, os dados da escala de proficiência do SAEB continuam indicando um quadro alarmante. Milhares de estudantes concluem a Educação Básica sem alcançar níveis mínimos de leitura, escrita e resolução de problemas, especialmente nas escolas públicas. Ou seja, comemora-se a forma — mas ignora-se o conteúdo.
Essa dissociação entre quantidade e qualidade revela o que Adorno chamaria de racionalidade instrumental: os meios passam a valer mais que os fins. Aprende-se a cumprir metas, não a pensar criticamente. E assim, a escola deixa de ser um espaço de formação de sujeitos e torna-se um centro de geração de estatísticas, útil para validar políticas públicas que pouco tocam a realidade concreta da sala de aula.
Nos anos finais do Ensino Fundamental, a situação não é melhor. A proficiência média em Língua Portuguesa diminuiu de 260 para 258 pontos, e em Matemática de 263 para 256 pontos entre 2019 e 2021. No Ensino Médio, os resultados também são preocupantes: a média em Língua Portuguesa caiu de 278 para 275 pontos, e em Matemática de 277 para 270 pontos.
Esses dados revelam que, apesar das altas taxas de aprovação, os estudantes não estão alcançando os níveis de proficiência esperados. A elevação das taxas de aprovação durante a pandemia, por exemplo, está provavelmente relacionada a ajustes nos critérios de aprovação e à adoção do continuum curricular, estratégias recomendadas e adotadas por parte das escolas.
A celebração de índices de aprovação elevados, portanto, mascara uma realidade preocupante: a de que muitos estudantes estão sendo promovidos sem ter adquirido as competências essenciais para sua formação. Essa prática não apenas compromete a qualidade da educação, mas também perpetua a exclusão social, ao não proporcionar aos alunos as ferramentas necessárias para sua emancipação e participação plena na sociedade.
Essa dissociação entre sucesso estatístico e aprendizagem efetiva também pode ser observada nos resultados das avaliações internacionais. No Pisa 2015, o desempenho médio dos estudantes brasileiros em ciências foi de 401 pontos — quase cem pontos abaixo da média da OCDE (493). Os estudantes da rede estadual obtiveram 394 pontos; os da rede municipal, apenas 329. O contraste com os estudantes da rede federal (517 pontos) e da rede privada (487) escancara a desigualdade sistêmica. Mesmo entre os que relataram gostar de ciências, o desempenho foi frágil, o que indica que o problema não está no interesse dos alunos, mas na falência institucional em garantir condições reais de aprendizagem. Em leitura e matemática, os resultados também foram alarmantes: cerca de 70% dos alunos brasileiros ficaram abaixo do nível 2 de proficiência, o patamar mínimo para compreender e resolver problemas cotidianos com autonomia. (INEP, 2016)
Essa defasagem reforça a crítica ao uso de índices como justificativa para um sistema que promove, mas não forma. Comemora-se a aprovação, mas ignora-se que muitos concluintes saem da escola sem dominar habilidades fundamentais de leitura, escrita e raciocínio lógico — justamente as que viabilizariam a continuidade dos estudos, o ingresso no mundo do trabalho e a participação cidadã crítica.
As consequências dessa formação esvaziada não se restringem à sala de aula. Elas se espalham pela sociedade e são perceptíveis na baixa qualidade dos serviços, na dificuldade de execução de tarefas simples, no despreparo técnico de profissionais das mais diversas áreas. Erros banais, repetição de falhas, desconhecimento de normas básicas e falta de proatividade tornaram-se parte do cotidiano — não por falta de esforço individual, mas por ausência de formação real. A crise da formação, como denuncia Adorno (1995), compromete a própria lógica de funcionamento da sociedade, pois transforma a escola em espaço de domesticação e o mercado de trabalho em cenário de improviso e precariedade. A incompetência que se observa no dia a dia, longe de ser acaso, é produto direto de um modelo educacional que finge formar, mas apenas certifica.
A FALSA UNIVERSALIZAÇÃO DO SUCESSO ESCOLAR
A retórica da excelência educacional, revestida de promessas de qualidade e inclusão, precisa ser confrontada com perguntas incômodas, mas inevitáveis: excelência para quem? Educação para quê? Diante de uma realidade marcada pela precarização da escola pública, pela fragilidade dos processos formativos e pela ausência de condições materiais e simbólicas para que a aprendizagem ocorra de forma plena, é preciso indagar a quem ou a que esse modelo realmente serve.
Theodor Adorno (1995), em Educação e Emancipação, já advertia que a organização social impõe aos sujeitos uma adaptação forçada à realidade vigente. Nessa lógica, a escola deixa de ser espaço de crítica e reflexão e passa a funcionar como aparelho de ajuste: forma-se não para a autonomia, mas para a aceitação silenciosa daquilo que está posto. Para Adorno, a formação — quando reduzida à mera instrução — “mantém os indivíduos na dependência de situações dadas”, impedindo o florescimento do pensamento próprio.
A necessidade de uma tal adaptação, da identificação com o existente, com o dado, com o poder enquanto tal, gera o potencial totalitário. Este é reforçado pela insatisfação e pelo ódio, produzidos e reproduzidos pela própria imposição à adaptação. (Adorno, 1995, p. 43)
O discurso falacioso apresenta-se com aparência de justiça e, assim, acaba se legitimando ainda mais, levando ao convencimento de que há, de fato, um sistema democrático e igualitário. No entanto, a escola, ao frustrar as promessas que ela mesma constroi, gera um mal-estar coletivo — não por desinteresse dos alunos, mas porque quebra as expectativas que ela própria cultivou. Essa frustração explode em formas visíveis: desânimo, evasão, violência cotidiana, apatia. Os alunos pobres são excluídos por dentro do sistema, em um processo de marginalização interna. Permanecem na escola, mas ocupam os espaços mais desvalorizados: séries de repetência, turmas de reforço, turnos e cursos com menor prestígio.
Essa frustração explode, assim, em formas visíveis: desânimo, evasão, violência cotidiana, apatia. Os alunos pobres são excluídos por dentro do sistema, em um processo de marginalização interna. Permanecem na escola, mas ocupam os espaços mais desvalorizados: séries de repetência, turmas de reforço, turnos e cursos com menor prestígio.
Como afirmam Bourdieu e Champagne em Os excluídos do interior (2008), “depois de um período de ilusão, e até de euforia, os novos beneficiados começaram a perceber que não era suficiente ter acesso ao ensino secundário para ter sucesso nele, e que não era suficiente ter sucesso nele para ter acesso às posições sociais, que o secundário abria na época do ensino elitista” (Bourdieu; Champagne, 2008, p. 482).
A escola pública, portanto, passa a funcionar como uma vitrine de promessas vazias: garante o acesso, mas não assegura as condições para que esse acesso se converta em permanência, aprendizado e mobilidade social. A democratização do acesso não se converteu em democratização do sucesso.
Essa situação é o que Pierre Bourdieu chama de “exclusão no interior da inclusão” — uma forma de segregação simbólica que atua sob o disfarce da universalização. O autor mostra que o sistema educacional, ao tratar como neutros os critérios escolares, legitima desigualdades herdadas como se fossem diferenças de mérito, fazendo com que os sujeitos internalizem o fracasso como destino individual e não como produto das condições estruturais.
Ao deslocar a explicação do fracasso escolar para o sujeito — e não para as estruturas que limitam sua trajetória — o sistema educacional reproduz desigualdades profundas sob o verniz da meritocracia. A escola pública, fragilizada pelas sucessivas reformas e pela ausência de condições estruturais, continua sendo o espaço onde se exige muito e se oferece pouco.
É nesse ponto que Pierre Bourdieu (1998) se torna fundamental para compreender como o discurso da excelência opera como um mecanismo de legitimação da desigualdade. Para o autor, o sistema educacional funciona como um campo de reprodução simbólica, onde o capital cultural herdado pelas elites é tratado como competência natural, enquanto os saberes populares são desqualificados. A escola, ao invés de corrigir essas assimetrias, as reforça — transformando desigualdade em hierarquia legítima.
Essa crítica é ainda mais incisiva quando se observa que o sistema de ensino, embora formalmente aberto a todos, permanece de fato estritamente reservado a poucos. Ao tratar como “mérito” aquilo que é, na verdade, produto de privilégios acumulados sob a forma de capital cultural e social, a escola naturaliza a exclusão e transforma desigualdade em hierarquia legítima (Bourdieu; Champagne, 2008).
Como afirmam Bourdieu e Passeron (1998), “o sistema de ensino aberto a todos, e ao mesmo tempo estritamente reservado a poucos, consegue a façanha de reunir as aparências da ‘democratização’ e a realidade da reprodução, que se realiza num grau superior de dissimulação, e por isso com um efeito maior ainda de legitimação social” (Bourdieu; Passeron, 1998, p. 485).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo deste artigo, buscou-se problematizar a ideia de “educação por excelência” a partir de uma análise crítica da realidade das escolas públicas brasileiras. O que se revelou foi um abismo entre o discurso institucional e as condições reais de ensino-aprendizagem, entre a promessa de formação plena e a perpetuação da exclusão simbólica e estrutural. A excelência, tão celebrada nos documentos oficiais e nas políticas de avaliação, aparece, na prática, como uma narrativa que mascara desigualdades profundas, culpabiliza sujeitos e legitima um sistema que pouco transforma.
A escola pública, fragilizada por reformas descontinuadas, por lógicas gerencialistas e por uma visão tecnicista da formação, tem sido submetida a pressões que a afastam cada vez mais de seu papel emancipador. Os altos índices de aprovação e as metas de desempenho servem, muitas vezes, mais à propaganda política do que ao compromisso com a aprendizagem real.
Nesse cenário, a escola deixa de formar sujeitos autônomos e críticos para operar como um espaço de contenção — um “estacionamento social” em que se permanece, mas não se aprende. Desse modo, se antes, os alunos pobres eram excluídos cedo, agora eles ficam mais tempo na escola, mas sem garantias de sucesso. Eles passam anos na escola, mas continuam como “excluídos potenciais” — estão dentro, mas não colhem os frutos. A escola, assim, virou um teatro de inclusão. Muitos alunos permanecem na escola sem sentido ou propósito real. Estudam, mas não veem retorno.
Os referenciais teóricos aqui mobilizados — especialmente Adorno e Bourdieu — foram fundamentais para compreender que a crise da formação não é apenas uma falha institucional, mas parte de uma engrenagem que serve à reprodução das estruturas sociais. A excelência, tão proclamada, longe de ser universal, tem sido privilégio de poucos. E quando se universaliza o acesso sem garantir condições de permanência, aprendizagem e desenvolvimento, produz-se uma forma perversa de exclusão: aquela que se dá no interior da inclusão.
A crítica à falácia da excelência educacional, portanto, não é um rechaço à busca por qualidade, mas à forma como esse conceito tem sido apropriado para encobrir desigualdades e neutralizar questionamentos. Ao substituir a escuta pela imposição de reformas verticais, ao reduzir o saber à lógica da competência e ao substituir o direito à formação pela responsabilização individual, o sistema educacional distancia-se cada vez mais de qualquer projeto que pretenda formar sujeitos livres, conscientes e capazes de intervir no mundo.
Diante desse quadro, é preciso reconhecer que a retórica da excelência, tal como vem sendo propagada, serve menos à transformação da realidade educacional e mais à manutenção de um sistema que se retroalimenta. Um sistema que legitima desigualdades estruturais sob o verniz da meritocracia e que transforma a escola pública em espaço de contenção simbólica — onde o fracasso é reconfigurado como escolha individual e o sucesso, como privilégio mascarado de esforço.
Acredita-se que mais do que prometer uma educação por excelência, o desafio é romper com essa lógica excludente e reconhecer que não há verdadeira qualidade sem enfrentamento das condições concretas que atravessam o cotidiano escolar. Isso implica desnaturalizar o fracasso, denunciar os limites impostos pelas políticas públicas e recolocar no centro do debate a função social da escola: não como reprodutora das desigualdades, mas como espaço — ainda que tensionado — de disputa por dignidade, sentido e formação.
A excelência, enquanto conceito, precisa ser resgatada de seu uso distorcido. E, para isso, talvez o primeiro passo seja admitir que o sistema, tal como está, forma menos para o saber do que para a submissão. Qualquer projeto que pretenda uma educação verdadeiramente transformadora terá que começar, não pela celebração de índices, mas pela escuta dos silenciados.
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